terça-feira, 13 de janeiro de 2009

MAÇÃ D'INVERNO


I

Mafalda acordou perturbada. Dormira mal na noite anterior. Na insónia do seu espírito, pairava ainda a memória fotográfica dos momentos passados com Gonçalo. Mas agora era Inverno, e a chuva gritava na vidraça do quarto. Ao longe, o mar. Encapelado e forte, como os cabelos daquele que lhe tirava o sono. Gonçalo. Não tinha vontade de se levantar da cama. Para quê? Que sentido tinha descer à rua, enfrentar a manhã e o mundo? Mafalda suspirava, querendo acreditar que, muito mais do que a lembrança de sarracenas noites, tinha sido a sopa de peixe com leite da véspera que lhe assentara mal. Mas não. O mal de Mafalda era outro – e ela sabia-o. Doía-lhe sabê-lo. E, no entanto, Mafalda sorria. De que sorria Mafalda? Talvez por se encontrar nas mãos de uns amadores que procuravam dar espessura e sentido a uma personagem sem qualquer tipo de interesse, exceptuando os olhos amendoados e os longos cabelos que em tempos foram de Gonçalo. Este partira, fugindo também ele àquele amor que ambos sabiam ser impossível. Souberam-no desde o primeiro minuto, desde o primeiro segundo. Mas não se importaram. Quiseram vivê-lo da primeira à última gota, como se fosse um cálice amargo de aguardente de medronho. Agora, guardava nos lábios o sabor irrepetível – ou não? – daquele amor que nunca chegou a nenhum altar nem teve rendas brancas ou candelabros de prata. Padres, menos ainda. Nem jóias de família, há muito vendidas para pagar as dívidas que antepassados contraíram em mesas de pano verde ou em lençóis malditos. Nas veias de Mafalda corria salgado o mar de Cascais. E, na sua fúria de viver, a força das ondas do Guincho, capazes de arrancar à vida mesmo o mais experiente dos banhistas. Até Gonçalo, musculoso e forte, se vira em apuros naquelas vagas traiçoeiras, tão traiçoeiras como os acasos da vida, que os juntaram por momentos para logo os afastarem para sempre − ou talvez não... Mais do que a dor da separação, Mafalda sofria a esperança de um reencontro. Afinal, Gonçalo não partira para muito longe. Angola era nossa, já ali, e não seria por certo a guerra que a impediria de visitá-lo. Bastava meter-se num voo low cost para Lourenço Marques e, em algumas horas, duas criaturas únicas e irrepetíveis voltariam a amar-se sobre as brasas da terra angolana. As insónias de Mafalda alimentavam o sonho de reencontrar o amado naquele pedaço de Portugal banhado pelo cálido Pacífico. De resto, África, misteriosa e profunda, tinha a poesia dos grandes espaços, o que conferia indiscutivelmente mais sal e glamour a uma paixão tão incompreendida por esse inferno que são os outros. Se Gonçalo tivesse partido para Sernache do Vouga ou para Freamunde, como chegou a pensar, esta história muito provavelmente nunca teria existido. Muito provavelmente. Por aqueles matos adentro, Gonçalo logo se destacara como o mais bravo do seu pelotão. Era, pelo menos, o mais bravo dos alferes do pelotão que comandava. Os seus homens confiavam nele e ele confiava nos seus homens. À noite, escrevia-lhes as cartas que mandavam às namoradas, em terras longínquas, rodeadas de pinhais e granitos, lobos uivantes e criaditas de servir. Era o pior de tudo. Aquelas cartas traziam-lhe à lembrança Mafalda. Como estaria Mafalda? Teria encontrado um novo amor? Casado, talvez? Com filhos? Quantos, três, quatro? Gonçalo partira há dois meses para África. Há dois meses se despedira de Mafalda. A última noite. E, agora, talvez Mafalda o tivesse trocado por outro, casado até, com um rancho de crianças a brincar em seu redor num esplendoroso relvado de uma moradia vasta. Não, não era possível! As juras que fizeram um ao outro foram demasiado fortes para que um amor tamanho se esfumasse como um dente-de-leão na brisa da Primavera. Mas agora era Inverno e chovia. Chovia no seu coração. Um coração que mesmo aqueles que o tentavam descrever se viam em grandes dificuldades, pois não era fácil construir um personagem como aquele. Um menino bem-nascido, que gostava de carros sport e se tornara homem com uma nanny inglesa, que ainda se recordava dos bigodes húmidos do nosso rei D. Carlos, mártir da fúria assassina dos marxistas-leninistas da República. Gonçalo, porém, era mais do que um «menino-bem» da Linha. O facto de a Mãe ter nascido em Agualva-Cacém, o segredo mais escondido da família Cepúlveda, contribuía por certo para que Gonçalo fosse mais − ou menos, consoante as perspectivas − do que um enfant terrible de Cascais. Nada disso ensombrava o brasão dos Cepúlvedas, a nobre pedra-de-armas que Gonçalo fizera bordar na sua farda de gala e que exibia garbosamente nos chás dançantes do Hotel Polana. Era o menino bonito de Luanda, por quem todas as negras da sociedade, filhas dos dirigentes do PAIGC, suspiravam nas castas matinés do Polana. Todas sonhavam casar um dia com Gonçalo. E se a comissão de serviço se prolongasse, essa era uma hipótese que não pode ser descartada. Leitor assíduo de Gilberto Freyre, crente e praticante furioso da miscigenação luso-tropicalista, Gonçalo acabaria por desposar uma crioula rica. Muito provavelmente. A história de Mafalda e Gonçalo emperrara aqui. Separados por algumas dezenas de quilómetros, os amantes não ajudavam ao desenrolar do folhetim novelesco. Seria necessário aditar um outro personagem ou matar um actor secundário. A velha e querida nanny recusava-se a desempenhar este papel. Vira guerras, revoluções, sobrevivera à pneumónica e, com mágoa, às violações em massa do Exército Vermelho na Berlim em chamas. Atravessara a República e o Estado Novo e, por isso, sentia-se com legítimo direito a não ser vilmente despachada logo à terceira passagem de um romance que tinha todos os ingredientes para dar certo. E, de facto, era verdade. Mafalda e Gonçalo tinham nascido um para o outro. Bonitos, elegantes, invejados pela melhor sociedade de Cascais, partilhavam os mesmos gostos: o toureio a cavalo, a pesca da truta, a física quântica. E até ambos se debatiam com a dúvida: «Deus existe?». Frequentadores das Conferências de S. Vicente de Paula, tinham as mesmas preocupações sociais pelos pobres. Por isso, nem Mafalda nem Gonçalo jamais desejaram ser pobres. De resto, se Mafalda ou Gonçalo fossem pobres, remediados até, esta história muito provavelmente nunca teria existido. Muito provavelmente. Almiro, não. Almiro era um pobre como daqueles que já não se fazem. Pobres como Almiro já não existem. Teve de ser alugado a um romance neo-realista e, garanto-lhe, caro leitor, o aluguer de Almiro não está a sair barato. É que, para já, os pobres têm o péssimo defeito de comerem demais. O orçamento deste projecto literário encontra-se, assim, seriamente ameaçado pelas despesas de catering. Sabendo-se essencial ao desenrolar da novela, Almiro cedo começou a fazer exigências de estrela: orquídeas brancas no camarim, passe social, espumoso de Sangalhos cuvée 1957, estudos superiores de Inglês Técnico. Um dia, cerejas do Fundão, quando não era o tempo delas; no outro, rapazitos da Obra da Rua; no outro ainda, aulas de piano com Rostropovitch. O seu desempenho acabaria por fazer esquecer estes caprichos de diva. De facto, como pobre Almiro era imbatível. Os pais eram pobres, os avós eram pobres, os avós dos avós nem existiam, de tão pobres que foram. Havia, é certo, um tio emigrante, que conduzia um carro de praça em Genebra, e chegara a alimentar a pretensão de comprar o velho solar dos Cepúlvedas. Mas, não interessando à economia da narrativa, passemos de imediato a anular o tio de Almiro num desastre de viação na vizinha Espanha, após horas de fadiga ao volante, na fobia de chegar à terra que um dia o viu partir − e que lhe chorou o Mercedes destruído. Almiro desconhecia o pai. Mas no rosto e no porte ostentava as marcas inconfundíveis de uma fidalguia de outrora. Sim, Almiro era fruto de uma noite de insónia de um velho conde, D. Thomaz de Biscaia. Nascera do efémero alívio de um aristocrata tão devasso quanto temente a Deus. Sua mãe era uma das mais belas raparigas de Agualva-Cacém, o que obviamente nos conduz à singela mas decisiva conclusão de que Almiro e Gonçalo poderiam ser, pelo menos, meios-irmãos. O facto de D. Fernão Cepúlveda ter falecido dois anos antes do nascimento de Gonçalo constitui, por certo, motivo para duvidar também da paternidade. E, se a isto juntarmos a circunstância de D. Thomaz de Biscaia ser visita de casa dos Cepúlvedas, tudo nos levará a crer que Almiro e Gonçalo eram, afinal, filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Beatriz Cepúlveda ter-se-ia deixado seduzir pelos retorcidos bigodes do lúbrico D. Thomaz de Biscaia? Muito provavelmente.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

II

O Destino, por vezes, hesita perante a complexidade pictórica da tapeçaria das Parcas. Os fios, pacientemente manipulados e tingidos, cruzam-se na teia da vida criando cenas bucólicas e galantes, tempestades, duetos amorosos e odiosos concertos de salteadores e bruxas. Mafalda acordou perturbada, mas mais perturbada acordaria se adivinhasse os cortes bruscos da tesoura e os nós apertados que, em breve, a estrangulariam – ou talvez não...
O sol bate a pique na Beira. Felizmente, Gonçalo está em Luanda e usa um quépi. Mas não por muito tempo. Não há paz nas ruas, nem tranquilidade nos espíritos dos Bembos, algures no sertão angolano. Com tristeza, mas também com alegria, Gonçalo deslaça os braços de Rainha Jinga – a vedeta transformista do Copacabana – e, como bom soldado e bom português, obedece à chamada e integra a caravana que abandona a cidade. No horizonte, a coluna de pó marca o avanço da civilização cristã e portuguesa... E ainda bem, porque três bivaques, dois rios e uma praga de gafanhotos depois, Gonçalo chega – finalmente – à baixa de Silva Porto Ferreira. Ao contrário do que imaginava, não foi recebido pelo orfeão do Colégio dos Jesuítas, não foram lidos poemas alusivos à linha do Tua ou às amendoeiras do Algarve, nem sequer foi convidado para jantar em casa do chefe de posto. Em vez disso, foi recebido por uma saraivada de zaragatoas uivantes:
- Irra! Já é demais! Vem um homem de Cascais para ISTO!? Que não se jogue bridge ou voltarete ainda vá, mas que se receba uma pessoa DESTA maneira! – reclamava Gonçalo a caminho da igreja precariamente fortificada.
Enquanto ao fundo, entre as árvores, Gonçalo redescobre o poder da oração, no canto inferior esquerdo do Arraiolos, o leitor poderá surpreender Mafalda no seu boudoir. Numa mão segura a pena, noutra uma faca para abrir as cartas que não chegam de Lourenço Marques. Por breves instantes, considera pôr fim à vida mas a lavagem ao estômago é sadicamente dolorosa e no Hospital de Cascais ensaia-se uma intervenção militar no Iraque. MI-LI-TAR... é com um frémito sensual que a ponta da língua de Mafalda toca os alvéolos.
Almiro, escondido entre a hera, observa Mafalda através da janela de cristal da Boémia. Herdeiro universal de um taxista português em Genebra (lembram-se?), Almiro arquitectou um plano maquiavélico de contornos chabrolianos, mas de matizes rohmerianos. O caderno de encargos inclui a demonstração científica da imoralidade das classes abastadas; a aquisição do solar dos Cepúlvedas (e a sua posterior reconversão num hotel de charme) e a sedução da ingénua Mafalda. A rêverie de Almiro foi sonoramente interrompida pela chegada de um descapotável vermelho sangue. As copas dos ciprestes ondularam e as camélias tísicas desmaiaram no chão quando os sapatos Ferragamo de Beatriz Cepúlveda tocaram o saibro ancestral da casa de família de Mafalda de Borgonha. Almiro cravou os olhos no peito arfante de Beatriz. Ele recordou-lhe imediatamente o perfil vigoroso de Thomaz de Biscaia e noites apaixonadas de insónia cristina. Só um Apolo de Belvedere e um São José de azulejos assistiram ao coup de foudre.
De novo, o Fado dobou apressadamente o fio de lã e Beatriz tomou Almiro por íntimo dos Borgonha e Mafalda, ao vê-los entrar em casa, partiu do princípio de que Almiro era um amigo de Gonçalo ou um personal trainer desvalido que Beatriz acolhera sob o dossel de chintz da cama Luís XVI. Na ausência da mãe, coube a Mafalda receber Beatriz Cepúlveda na delapidada sala de estar da família Borgonha. Todavia, o ambiente revelou-se incómodo e insalubre. Os olhares concupiscentes de Almiro e as palavras enviesadas de Beatriz sugeriam ligações perigosas. Tudo era equívoco e Mafalda temia não entender todo o sentido e o pleno alcance dos vocábulos proferidos: como se arrependia de não ter frequentado o Liceu Francês!... Beatriz evocou a antiga amizade entre os dois clãs e mostrando-se conhecedora dos problemas financeiros dos Borgonha, ofereceu-se, solidária, para comprar a casa onde Mafalda nascera e vivera toda a vida. A intenção de Beatriz era oferecer a casa a Gonçalo e à mulher com quem ele viesse a casar. Mafalda estremeceu (o ferro de engomar estaria ligado?), pois ainda acalentava a esperança de ser ela a predestinada. Beatriz, ignorante do drama ingente da rapariga, decantava saudades do filho degustando o inesquecível sabor a África do Baile do Governador!
Entretanto, em Angola, Gonçalo, graças ao auxílio do PIDE (Programa Internacional de Desenvolvimento Ecológico), descobriu as causas da revolta dos Bembos. Após a leitura não enquadrada da constituição apostólica Munificentissimus Deus, instigada por missionários protestantes norte-americanos, os nativos recusaram-se a aceitar o dogma da Assunção de Maria e, perante a indisponibilidade do bispo de Quelimane para o diálogo ecuménico, atacaram a cidade branca e os colonos portugueses. Sentado à mesa conciliar, Gonçalo fazia paciências e cogitava:
Nas próximas páginas, iremos com certeza bordar as novas tapeçarias de Pastrana! Muito provavelmente.

domingo, 11 de janeiro de 2009

III

Porquê a física quântica na Luanda do Índico? Gonçalo pensava na Mãe com todas as forças que Deus e o Acaso lhe haviam dado, sob a inclemência do Cruzeiro do Sul. Nunca ocorrera a Gonçalo que meia dúzia de luzeiros celestes pudessem castigar assim a sua cútis atreita a melanomas vários. Porquê pensar na Mãe depois de Freud ter demonstrado cientificamente a natureza pecaminosa dos actos de Édipo? Ciência: quântica. Édipo: Cruzeiro do Sul. Mãe: Mafalda. O robusto herói da nossa História.... Pois não viria Gonçalo a ser um herói da nossa História? O sólido protagonista desta epopeia geográfica e luxuriosa, dizia eu, não resistiu à evidência mística da inicial comum em «Mãe» e «Mafalda». Refutado assim o princípio da incerteza que lhe animara a mais tenra infância e a adolescência agora finda, Gonçalo mal teve tempo de se limpar do jorro de natureza que os pensamentos solitários lhe haviam inspirado. Onde poderá Gonçalo descobrir um padre perante quem se confesse? Quem lhe dera uma missão na fiel Timor! O alferes entretanto promovido a capitão, coagido pela ausência de um homem de Deus, correu para o rádio-satélite a ouvir uma mãe-de-santo de Salvador da Bahia que o Pai lhe recomendara para as aflições.
A Pátria nunca dominara o espírito ávido do pescador de trutas em toureio a cavalo. Agora, todavia, a alma de Gonçalo, envolvida no pesadelo sifilítico que sucedera à confissão do desejo materno, sentia a universalidade da língua de Garcia de Resende. Gonçalo percebeu que o comércio triangular e cristão não era triangular, mas apenas cristão. Da Bahia a Díli, dava seguramente para desenhar o pé da Cruz. De Lourenço Marques a Caminha, faziam-se os braços sagrados, com espaço suficiente para pendurar uns vasos com flores do Alentejo primaveril. In hoc signo vinces, como lhe dissera a professora primária cujos túrgidos seios Gonçalo não conseguia esquecer. Assim convertido ao Desígnio patriótico do Quinto Império, o filho dos Cepúlvedas abandonou as armas em favor do breviário, que decidiu difundir por entre os cafres. O hábito não se dá bem com o calor, é certo, mas mais vale uma insolação incerta do que a certeza de os turras haverem de apanhá-lo. Haviam de apanhá-lo? Muito provavelmente.

Almiro e Beatriz tinham partido há pouco de mão dada e olhares enternecidos quando Mafalda recebeu as novas africanas do múnus evangelizador que Gonçalo abraçara. Não queira a pudica leitora saber das palavras cruas que Mafalda soltou perante a informação que a Caras não desdenharia:
_Ó Almiro! Ó Beatriz! Voltem cá já, que eu desfaleço de rancor e ódio! Ai, o malandro! Ai do malandro quando lhe puser as mãos em cima!
_Que foi, que foi, rica filha?! — disse a generosidade quase materna de Beatriz.
_O que é que foi, florzinha de Cascais por desflorar?! — inquiriu Almiro, regressando à mansão .
_Atão vocês não querem ver que este filho de uma cadela renunciou eternamente ao amor de Eros que me dedicara?!
Lembrando-se da sua condição de prima donna nesta opereta dos Borgonhas, Mafalda reformulou:
_Oh, que não sei de nojo como o conte! O Destino, o Fado e o Desígnio Inteligente reuniram-se para maior desgraça desta descendente de Teodorico dos Suevos!
Mais satisfeita com o que agora lhe saía da boca, Matilde continuou:
_Bem sei, Almiro, que não conheces aquele por quem tremem o meu coração e os lírios roxos da minha vergonha! Bem sei, Beatriz, que ignoras o amor que dedico a quem foi o mais esplêndido frequentador dos lupanares de Cascais! Bem sei, janela de cristal da Boémia, que nunca os raios de luz reflectidos por aquele semblante lúbrico atravessaram a substância translúcida que te constitui....
Matilde parou um instante, a calcular a média de palavras esdrúxulas por linha, procurando com afã algum pronome enclítico que pudesse ter gerado o horror de uma bisesdrúxula. Só sossegou com a certeza de ter respeitado os índices tónicos do livro de estilo do Diário da Manhã.
_Vem, pelo que te é mais caro, aos meus braços, ao meu seio e à minha púbis. Vem, Almiro, desagravar-me desta dor que corrói a alma! Espera um nadinha, Beatriz, que já to empresto! Oh!...
À beira de desmaiar, Matilde ainda pôde sentir o tremor e espasmo que Almiro lhe dera com afinco no entretanto. No entretanto, e no canapé. Beatriz, impaciente, colaborara com o herdeiro dos Thurn und Taxis — ou, pelo menos, do turno dos táxis — no tributo ao deleite de Matilde.
_Parto agora de cargueiro para o Ultramar! Impedirei que se perca o corpo daquele que amo numa alma oferecida em hecatombe aos pés dos hotentotes. Deixem-me, deixem-me, que este chão não reterá a força do meu desejo!
Novo instante de paragem. Será lícito, numa frase só, dizer hecatombe e hotentotes, logo depois de o narrador ter escrito do deleite de Matilde? A cacofonia, no entanto, também não a demoveu. Conseguirá Matilde inverter o curso da História? Muito provavelmente.

O Atlântico flui por entre as suas margens acolhedoras e lascivas desde há milénios. Se mil anos perfazem um milénio, o que perfará um milhão? Matilde sonhava pela amurada com a fluidez e a fluência daquelas águas. Tanto fluido despertou-lhe as humidades da juventude, alçou-lhe o olhar para um grumete de olhos pestanudos, corpo franzino e sorriso tímido que esfregava o convés. Matilde não negou o sinal que aquele oposto de Bernardo e Almiro ali representava. Bernardo, o ex-alferes promovido a capitão que naquele momento tomava ordens em Lourenço Marques, era a tese a que o grumete fazia a antítese. A viagem de Matilde almejava a uma síntese entre o Amor, a Pátria, a Fé e a Família. O Futebol de Eusébio nunca roubara Matilde aos pontos cardeais da moral dos Borgonhas. E a vergonha não lhe toldava o siso:
_Como hei eu de fazer o grumete sem ser descoberta? — cogitou.
O corpo franzino escondia uma força rija de dimensões ciclópicas. O tronco da araucária secular dos jardins dos Borgonhas encontrava ali um irmão direito e inquebrável. O balanço insistente das águas equatoriais poupava os amantes simbólicos da negação hegeliana ao cansaço pélvico de kama sutras antigos. Matilde atingiu vezes sem conta o Céu terreno das contracções vulvares. Perdeu-se a Estrela do Norte no horizonte, elevou-se o Cruzeiro que abrasava Bernardo, tudo sem que Efigénia — a transsexual empregada como grumete no navio rumo ao Sul — retirasse aquele opíparo mastro das regueifas feminis de Matilde.
Por falar em opíparo, Matilde sentiu fome. Experienciou-a como saudade das sandes mistas de orelheira e queijo de Azeitão que José, o mordomo da Família, sempre lhe preparara com dedicação. O velho José, que se recordava da pneumónica e temia a tuberculose e as lombrigas como quem teme a Danação e o Apocalipse, sempre lhe havia aconselhado a gordura em lugar da formosura:
_Coma bem, Menina! Coma carninha, peixinho e pãozinho, que lhe darão saudinha! Largue essas revistas malignas que hão-de levar gerações de anorécticas ao assoberbamento do SNS universal e gratuito! Coma legumes da horta, ovos da galinha, queijo da vaquinha!
Trinta e nove palavras de um mordomo glutão possuído pela praga do diminutivo em -inho. Que história é esta?! Que inclinação comunista pode dar tanta voz aos subalternos? Matilde continuava com fome. Se houvesse trutas no mar, saciar-se-ia à linha, recordando enlevos fluviais na companhia de Bernardo. Mas a improbabilidade da truta no escuro Oceano só acirrava o anseio de alimento que torturava a principal actriz do nosso enredo. Matilde comeu uma maçã de Inverno e umas bolachinhas de água e sal antes de regressar ao leito, desta vez para um sono restaurador. No dia seguinte, o Ponta de Sagres acostaria em Lourenço Marques. Conseguiria Matilde dobrar o Cabo das Tormentas de Afrodite, tolhendo o percurso do Espírito de Bernardo?... Hã? Muito provavelmente!

sábado, 10 de janeiro de 2009

IV

Mãe-África


“Kanimanmbooooouuuuhhhh.... oooohhhhhuuuuuu
Kani Mambo! Kani Mambo! Kani Mambo! (coro)
Kanimambooo, só contigooo eu consigo entender o amor,
Kani Mambo! Kani Mambo! Kani Mambo! (coro)
Kanimambooo, preso aos laçooos dos teus braçooos a vida melhora...
É por isso quando tu sorris que o feitiço me faz tão feliz
E me obriga a que eu diga
Kanimamboooo como o negrooo diiizzz (...)
Tudo é kanimamboooo.... oooohhhhhuuuuu”

João Maria Tudela, 1957

Chegaram a Luanda na madrugada do 4 de Fevereiro. Da amurada do navio viam-se ao longe as luzes da cidade. Era uma África muito diferente daquela que sempre imaginara. Por mais que tentasse Mafalda não conseguia ouvir batuques, nem existiam fogueiras na praia, nem coros de negras repolhudas e de bundas opulentas, sorrindo envoltas em panos de cores extravagantes. Não havia palhotas, nem sequer se sentia o rugido tonitruante dos leões com o cio. Em vez de uma cacofonia de pássaros pousados no escuro da selva, o grito das aves reduzia-se ao frio assobio das gaivotas oportunistas que caçavam o peixe miúdo em redor do paquete. Com intervalos regulares, a brisa que cortava o ar quente trazia-lhe um vago ruído de carros e de gentes, como se por detrás daquela madrugada houvesse uma metrópole fervilhante sob o calor dos trópicos. A selva, a savana, os leões, os leopardos e os elefantes, tudo isso ficava, ainda, muito longe.
À medida que se aproximavam percebeu com surpresa que era noite de Festa. Ia acordando de uma espécie de torpor sonolento que parecia tê-la assaltado durante a viagem. Por toda a cidade de São Paulo de Luanda silvavam explosões e um estranho fogo de artifício. Não percebia porquê tanta agitação. Será que a sua amiga Melita, afilhada do senhor presidente do conselho, tinha prevenido o senhor governador da sua chegada a esta linda província ultramarina!? Teria direito a tapete vermelho assim que saísse do cais?! Dar-lhe-iam logo um Logan com água Castelo? Estava cansada da longa viagem no Ponta de Sagres; farta do Vermute do bar e de ouvir os piropos tauromáquicos dos soldados, sempre que vestia o seu calção de pirata vermelho que comprara numa ida a Londres. Até os oficiais simulavam touradas à sua passagem, rindo alcoolizados, ao mesmo tempo que colocavam o punho à frente da testa com o polegar e o mindinho levantados. Ela passava impávida por entre estas crianças grandes, de fardas verdes, que pareciam querer esquecer que iam lutar pela pátria, salvar-nos da barbárie e do comunismo a que até os americanos nos queriam entregar.
Lá fora, o estardalhaço e o ruído das explosões eram magníficos. Ficou surpreendida e feliz ao ver o céu cobrir-se de pequeninas estrelas de mil cores que se desfaziam ao cair sobre os edifícios e as árvores. Imaginou-se logo deitada numa tolha de piquenique, sobre a areia quente de uma praia tropical, nos braços fortes de Gonçalo, sentindo-o recender um cheiro másculo a suor recente, os dois olhando a imensidão da via láctea, tolhidos apenas por este nova explosão de pigmentos e cristais, como uma chuva de felicidade.
Mafalda, absorta no seu sonho, nada percebia. Lentamente, de forma irreflectida, a sua língua procurava humedecer os beiços, fazendo movimentos circulares. Começavam a assomar uns estranhos calores e imaginava as mãos fortes de Gonçalo a despir-lhe devagarinho os botões da blusa de seda que haviam comprado juntos na Loja das Meias. Desde o capítulo anterior que Mafalda se sentia estranha. Até passara por uma nova crise esquizofrénica em que mudara de nome e se entregara a um estranho e enérgico grumete cuja língua conseguia coçar a cova do próprio queixo, ou tudo isto teria sido culpa da pena apressada do novelista e dos litros de vermute que havia bebido desde a sua última saída a terra no já longínquo Porto do Mindelo? Mesmo com todos os erros prováveis que o estilo e a gramática, sempre generosos, esquecem, havia um mistério que emergia enorme dentro de si, abrindo-lhe as portas para novas experiências e para novas percepções. O calor, o ar doce e perfumado despertavam-lhe um fogo adormecido que queimava como lava fumegante.
África! A Mãe-África! Essa leoa de sentimentos e paixões inundava-lhe os sentidos, desregrava-a, aquecia-a, fervia-lhe o sangue e os fluidos. Sentia-se culpada por ter traído Gonçalo com o grumete, mas já tinha muitos anos de missa e de confissão. Sabia que ia sofrer um pouco, que a sua consciência a iria perturbar nos momentos de desalento, mas tudo se iria compor. Se Nossa Senhora era capaz de alcançar a conversão da Rússia, com certeza também a poderia perdoar.
De repente, gritos cortaram o ar.

- Foda-se! Caralho! Foda-se! Os turras!, começaram uns soldados a gritar.

Regressou espaventada do seu mundo de fantasia. Vindo do nada um dos foguetes parecia dirigir-se contra o paquete. Já não entendia o que se passava. Todos estavam assustados e tentavam correr para fora do convés. Os soldados vociferavam já injúrias a um deus desconhecido e mau que os espreitaria por detrás do capim, em cada picada, em cada palhota. Mafalda ainda de pé e quase sozinha no meio das cadeiras tombadas olhava maravilhada este milagre de um foguete que se perdera na noite escura, passando junto a si, deixando um rasto de luz que só os seus olhos viam. Era um acontecimento extraordinário e pensou consigo mesma que deveria ser um bom presságio.
Novamente foi obrigada a descer para longe da poesia. Um dos soldados atirara-se contra ela, caindo inteiro sobre o seu corpo, fazendo-a tombar no deck húmido. Com os estremeções do navio os corpos enlaçaram-se e deslaçaram-se. Mas o soldado ainda conseguiu beliscar-lhe a coxa acrescentando:

- Boa chicha, ó garina!

Não compreendia nada. A realidade chocava contra o seu ser como um bólide desgovernado no autódromo do Estoril.
- Chicha!? O que era aquilo?... Onde estava?... Não eu não me chamo Matilde, pensou.
Olhando de frente reconheceu claramente o rosto do soldado Zé. Lembrava-se de o ter ouvido cantar o fado durante a viagem, quando visitou o convés da 3ª classe. Morava na última barraquinha existente na Rua do Capelão, na Mouraria, um local apenas frequentado por mulheres de má sorte, fadistas, faquistas, intelectuais pobres, marialvas sifilíticos e mesários infelizes da Irmandade do Senhor dos Passos da Graça que até o anel de brasão tinham posto no “Prego” de um judeu. Zé tinha uma mãe alcoólica, um irmão aleijadinho e uma irmãzinha anã. Não servindo para mais nada, sendo Portugal um país pequeno e com convencionais perversões sexuais, a anã vendia aguardente falsificada e traficava liamba por conta de uns pretos recentemente chegados para as obras da nova ponte Salazar. Era o sustento da família. Com tanto empreendedorismo, se estivesse estabelecida em Paris de França, já seria dona de uma casa de prazer, onde receberia psicanalistas da Rue de Lille e diplomatas do 16ème arroundissement.
Apesar do ar malandro e do belo sorriso já comido pelas cáries, Mafalda gritou-lhe autoritária:

- Saia daqui seu ordinário, ou chamo o capitão!
- Olha! Olha! C’a gaja fala bem c’o m’uma varina.
Tens boa goela, ó garina! Dá-me um chocho... váá láá?!... Nem vias o róckette que aí vinha... Tavas a pensar no Ifigénia, não?! E eu aqui sozinho, disprazado... Ó carita laroca, eu vi tudo...

A boca dele ia-se aproximando perigosamente, por entre os avanços e recuos do doce balançar do navio... Sentia-lhe o hálito a vinho do Cartaxo e a Ginjinha... Parecia que estava entontecida e num fadinho da Hermínia Silva...
Era demasiada luta de classes para o seu gosto. Pior que um desses poemas modernos, onde apenas se fala das dores do eu e de nomes de medicamentos para a neurastenia e nem se consulta a virgem de fátima. Num salto, Mafalda afastou-se horrorizada, como um cavalo espantado. Tinha voltado à realidade. Não, não era Matilde. Há muito que não tinha dessas crises. Desde os anos do Ramalhão. Caminhou apressadamente e de forma vigorosa para a 1ª classe, o corpo dava ainda estranhas sacudidelas. Eram as sequelas de 1000 anos de endogamia e de ociosidade familiar. Toda a sua vida tinha aprendido a mais pura gentlemanship com o mordomo de seu pai. Não era agora que ia perder o controlo. Ela era uma Borgonha, neta de Fuas, Ordonhos, Egas e Mendos. Tinha vindo para salvar Gonçalo, o homem da sua vida. E sabia bem que apenas se poderia dar com pessoas que tivessem mais de cinco nomes, que usassem pelo menos dois apelidos e uma partícula, que fossem ainda vagamente seus parentes e que nunca dissessem lábios, nem sequer em contexto ginecológico e mesmo sendo médicos. Os restantes acontecimentos mais embrulhados eram apenas momentos acessórios, impulsos animais que depois mortificava com silícios e com açoites nalgais quando estava a sós com Gonçalo. Sentiu de novo a tensão e o calor a subir-lhe pelos peitos afogueados, concentrando-se nas pequenas elevações rosadas dos seus mamilos. O coração bateu mais depressa. Montesquieu já tinha falado nesta estranha influência do clima sobre as civilizações e até tinha lido umas coisas sobre o assunto nos apontamentos de estratégia militar de um general que era primo da Carminho Arriaga, mas nunca sentira tal coisa, apenas nesta atribulada chegada a Luanda.
Respirou fundo para se controlar novamente. Percebia agora que tinha chegado a África. Tudo aqui era aventura, neste continente negro e misterioso, este buraco quente e húmido onde a razão desaparecia e todas as paixões se exaltavam. Foi para o camarote tomar um duche e aspergir-se com Channel 5. Porém, quanto mais se aproximavam de terra, mais esta parecia emanar um cheiro acre e excitante. O seu amor não devia andar longe. A sua essência já estava no ar. Era-lhe trazida pelo cheiro dos embondeiros, pelo bater de asas nervoso dos pássaros coloridos da selva e pelas impalas e gazelas que, fugindo assustadas dos predadores, se colocavam tão velozes como o vento. Sentou-se à frente do toucador e penteou longamente os seus belos cabelos. Imaginou pores-do-sol imensos, sob um céu que parecia nunca acabar, numa sucessiva mancha de diferentes tons amarelos e laranjas, gradualmente desfalecidos, entrando por uma noite escura que lentamente se tingia de negro. Mas agora tinha que acordar, deixar as metáforas de mau gosto e pensar em como conseguir organizar uma expedição para resgatar Gonçalo das mãos dos terroristas. O navio estava quase a atracar. O primo Benevides, secretário-geral do governador da colónia, esperava-a com o seu motorista.
Os primeiros a sair do Ponta de Sagres foram os soldados, que eram esperados por longas filas de camiões verdes. Rapidamente iriam desaparecer engolidos pela poeira, pelo calor e pelos urros dos sargentos. Depois desembarcaram algumas famílias de mãos calosas, cujas velhas, de semblante cerrado, se vestiam de negro e traziam nos bolsos terços de Nossa Senhora de Fátima. Os fatos escuros, os cestos de verga com cebolas e chouriços, e os rostos tisnados do sol eram-lhe familiares. O ciciar fê-la perceber que vinham da Beira, de Vale de Gatos, e que iam para a Lunda povoar a zona recentemente atacada pelos terroristas. Só faltava trazerem o seu porquito e uma enxada ao ombro. A esperá-los estava uma camioneta desengonçada, onde um comissário do governo mordia as unhas no seu fato de linho branco.
Os frémitos de excitação de Mafalda estavam longe de aplacados. Continuava agarrada ao seu frasco de Channel 5 para disfarçar todo aquele odor másculo que entupia o ar. O cheiro adocicado do perfume francês era a única forma de a salvar do pecado. Que pena ter trazido tão poucas embalagens nas suas 23 malas... Inalou repetidamente, ao mesmo tempo que a culpa a assaltava, uma outra vez, fazendo-lhe chegar aos olhos estranhas e inconfessáveis imagens em que era uma bacante nua, em selváticos amplexos com um grumete franzino. Queria apagar dos olhos aquelas vergonhosas sombras de insinuantes cintilações. Olhou para a família beirã que descia a escada e viu como o filho, de ombros largos e mãos grossas, levava na mão um terço de prata. Era um sinal de que a redenção existia. Mas o rapaz tinha mesmo um lindo sorriso.
- O primo Benevides, onde estava o primo Manuel de Benevides!?, pensou.
Quando já estavam a sair as elegantes mulheres dos colonos ricos, com os seus belos chapéus e encantadores véus mosquiteiros que lhes cobriam parte do rosto, viu, finalmente, um carro preto emergir na confusão do porto. Um esbelto africano de enormes beiços voluptuosos abriu-lhe a porta e ela sentou-se ao lado de Manuel. Finalmente sentia um pouco de paz. Respirou fundo, mas foi por pouco tempo. Manuel de Benevides disparou.
- Ainda bem que veio, minha querida. Vamos já para o palácio do governador. Temo que não tenha boas notícias para lhe dar.
Enquanto o carro atravessava como uma seta a cidade, Manuel contou-lhe como Gonçalo fora capturado pelos guerrilheiros da UPA. Os membros do batalhão que não tinham sido mortos estavam prisioneiros numa zona inacessível do planalto dos Dembos, fortemente protegida por aldeias de ferozes kikongos, com as suas saias de sisal e as narinas perfuradas por dentes de leão. Armados pelos comunistas de Patrice Lumumba, eram um dos principais problemas das autoridades portuguesas que há séculos os tentavam converter à civilização pela bíblia, pela lei, mas também pela bala quando necessário. O governador já tinha tentado trocar Gonçalo por dois dirigentes terroristas, mas a resposta fora negativa e revelada às autoridades sob a forma de uma chuva de zarabatanas venenosas. Sabia que isso lhe iria trazer problemas em Lisboa. A família de Gonçalo jantava todas as semanas com, pelo menos, três afilhadas do presidente do conselho e a sua cozinheira era prima da poderosa D. Maria, cujas opiniões e influência desfaziam carreiras em São Bento.
Mafalda ficou ainda mais inquieta e ansiosa. Precisava de agir. Pediu ao governador que a incorporasse numa das colunas que mais cedo partisse para os Dembos. Ela iria como comissária do governo para a Bula da Santíssima Cruzada e da Conversão da Rússia. Atravessaria todas as Missões e percorreria o árido e selvagem interior da colónia, afastando-se cada vez mais das doces praias banhadas pelo oceano Pacífico, onde os soldados e as filhas dos colonos ouviam nos seus transístores Natércia Barreto cantar:
“Já arranjei muito bem tudo quanto convém para a praia levar
O pente, o espelho e o baton e um creme muito bom para me bronzear
Tenho o meu rádio portátil e o biquini encarnado também está no meu rol
E como é bom de ver não podia esquecer os meus óculos de sol
Que levo para chorar... uhuhuhuhu... sem ninguém ver
Para não dar... uhuhuhuhu... a perceber
Para ocultar... uhuhuhu... o meu sofrer
Pois eu sei que te hei-de encontrar talvez deitado à beira-mar
Com outra ao lado e eu vou passar a tarde a chorar (...)”

- A Febre

Do outro lado de Angola, numa machamba de pretos, sob a torreira do sol da Savana, outras vozes despontam nesta narrativa. Sem regras e sem limites a novela abre-se agora num fole, qual coro polifónico, a muitas e desencontradas personagens.
A voz da consciência de Gonçalo, angustiada e pastosa pela febre, iniciava o seu caminho.

O capim prolongava-se alto, por quilómetros em redor, cobrindo toda a terra mesmo por debaixo das árvores. Era tão crescido e esguio que nele se podiam esconder os pretos e os animais do mato. Atravessávamos picadas intermináveis entre estas paredes de capim, nas quais os pretos colocavam minas ou armadilhas para fazer voar os nossos jipes. E aqui o voo era directo para o céu. O barulho dos animais e dos pássaros troava nos ares. Ninguém queria conversar. Já não sabia se a respiração do Tavares era a de um turra que se escondia mesmo ali ao meu lado de fuzil na mão, pronto para atirar.
Tudo o que implicasse sair do aquartelamento era uma tortura. Os homens tentavam fechar-se nas casernas e em trabalhos rotineiros. Os que podiam dormiam, outros fumavam, outros ainda tinham descoberto as delícias da liamba que trocavam com a população das aldeias.
No rio as pretas lavavam roupa e fugiam de nós sempre que conseguiam. Mesmo quando se deixavam violar ficavam tão quietas que nos davam medo e vergonha.
O capitão Cabral obrigava todos os oficiais a usar gravata quando jantávamos.
- Nem no mato deixamos de ser uns senhores, dizia.
Depois repetia aos gritos:
- Isto não é um País! É uma Paísa! Uma Paísa!
- Melhor ainda meu capitão, dizia o Tavares, assim sempre deve ter boas mamas.
- Ó seu burro não percebes nada! E ainda por cima republicano! Mamas?! Mamas!? A pátria com mamas!... Pensas que és alguém?!... Achas-te o Doutor Adriano Moreira... o Afonso Costa! Quem tem ideias são os políticos. Pagos para isso e escolhidos pelo Doutor Oliveira Salazar. Deves pensar que és um desses intelectuais barbudos que não fazem fazer nada senão coçar o cu, nem sequer se sabem vestir, e que pensam que escrevem para o povo. O povo, pffff!... E fazia um esgar de repulsa...

Dentro da sua palhota, aprisionado pela monomania religiosa no Quinto Império e pela febre e os tremores do paludismo, Gonçalo suava abundantemente e recordava os últimos meses de vida militar. Tudo era um sonho. A vida seria um sonho? E um sonho bom? Provavelmente, provavelmente. Só queria ter a sua maçã de Inverno. Comê-la. Aqui e agora. Provavelmente...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

V

Mafalda impacientava-se. A prometida coluna para o planalto dos Dembos tardava em partir – problemas logísticos e de devida preparação política e cristã dum batalhão composto por montanheses embrutecidos de Quintanilha, lá de trás dos montes, complicavam os horários de defesa da Pátria. Ou talvez o Governador temesse as consequências de enviar uma filha de boas famílias, descendente de Teodorico dos Suevos!, e para mais com contactos com várias afilhadas do Senhor Presidente do Conselho, para os confins da civilização, onde poderia ser fácil presa dos apetites animalescos de gentes nada cristãs e, acima de tudo, pretas.
Fosse como fosse, o primo Manuel de Benevides encontrava sempre uma qualquer desculpa razoável, como a de ser necessário habituar os homens da escolta ao uso de sapatos. Entretanto ia passeando Mafalda pelos bailes e recepções, disfarçando cada vez menos os desejos lúbricos que o assaltavam.
- “Ó prima”, dizia-lhe amiúde por entre tentativas dançarinas de lhe sentir as voluptuosas curvas, “fique antes em Luanda, onde há bailes com caviar e água canalizada! Porquê essa fixação em percorrer picadas infindas atrás de um oficialeco transformado em missionário com sonhos ímpios de fraternidade universal que põem em causa o Estatuto do Indigenato?” Pois que notícias do inesperado entusiasmo cristão de Gonçalo tinham sido transmitidas pelos serviços da PIDE (Parca Inteligência de Devassa Nacional).
Mafalda, com algum custo, porque é sempre difícil resistir a mil anos de criação genética que a todo o momento lhe dizia que aos primos é que se deve conhecer biblicamente, recusava os seus avanços agarrando-se à imagem máscula do seu Gonçalo. Manuel amuava como se toda a linhagem tivesse sido ferida.
- “Tudo isto por alguém cujos antepassados nem lutaram em Aljubarrota e nem sequer é da família”, dizia, enquanto desviava o olhar para o lustro d’ébano das empregaditas ovimbumdo nas suas farditas francesas.
Debaixo deste constante cerco, o que valia a Mafalda, além das memórias e fantasias com Gonçalo, era a companhia e o apoio sempre terno de Cilinha Damião, socialite de velhas famílias coloniais com alguma, pouca, mancha de crioulagem. Era Cilinha quem amparava os seus choros, dos mais histéricos aos mais nostálgicos. Era Cilinha quem lhe ouvia as confissões, desejos e temores mais íntimos. Era Cilinha quem lhe dava o perdão pelos seus pecados e a força para persistir neles. Tal como a muito querida madre Joana da Cruz do Cristo Impaciente, do seu velho e querido Ramalhão.
- “Cilinha, Cilinha...” dizia Mafalda, “se não fosses tu”, pois já se tratavam por tu tão grande a intimidade, “nem sei o que faria de tão desesperada que ando!”
A isto Cilinha respondia com o seu sorriso doce de lábios humedecidos:
- “Ó meu amor, não podes deixar-te ir abaixo! Olha que a vida tem mais do que Gonçalos!”
E essa palavra amor, naqueles lábios tão amigos, fazia nela estremecer todo um passado que julgava já esquecido. Voltaria esse passado a ditar as vicissitudes do presente? Muito provavelmente.

* * *

Gonçalo estiolava no seu cativeiro kikongo. O ar quente e bafiento da palhota em que o encerraram, onde se amontoavam moscas e mosquitos entre outros vermes menos alados mas igualmente vorazes; o frio das noite no planalto, onde ao longe se podiam ouvir congressos uivantes de selvagens bestas em redor do rio Úcua; o suor catingoso dos seus carcereiros, mesclado com o cheiro de roupa usada até à exaustão molecular, que bem lhe fazia lembrar a excursão a Odivelas para ver os pobres durante as cheias, organizada pelas Conferências de S. Vicente de Paula – tudo isto pregava Gonçalo ao tormento do seu corpo, essa carne prisioneira dos reveses do Império, ao mesmo tempo que o elevava para as luminosas paisagens da beatitude.
África era a sua Cruz, percebia-o agora com a limpidez de quem viu a virgem santíssima e imaculada num golpe de sol.
- “Quão errado estava!” Dizia agora para consigo na purificação malárica do seu arrebatamento exclamativo, “Não será na carne, na enganadora carne, que encontrarei a paz!” Não seria, portanto, Mafalda ou qualquer outra mulher de ocasião, quando ocasião havia, que o haveriam de desviar do seu verdadeiro fado e destino – o de ser uma espécie de São Francisco Xavier dos pretos. E, como ele, morrer missionário. Com esse martírio salvando da tenebrosa impiedade as legiões selvagens do Portugal d’além mar, pensava, ao mesmo tempo que desfiava, com voz trémula mas inquebrantável, a litania dos santos e outras ladainhas de pai-nossos, salvé-rainhas e avé-marias. Longe, cada vez mais longe, não só do amor terreno, como do amor guerreiro à pátria.
A transfiguração de Gonçalo preocupava os seus captores. Não o queriam imprestável para os seus interesses libertadores. Depois de aturadas conversações com o adido soviético que, através do Zaire, fazia a ligação à solidária Moscovo (há muito que os evangelizadores americanos tinham já esgotado a sua ajuda contra o Luso-Papismo), decidiram-se pela terapia de choque, como meio de trazer Gonçalo de volta à realidade das coisas tangíveis. Depois de muitos banhos de água fria e suja, entrecortados com outros tantos de água quente e óleo de rosas (sempre difícil de arranjar em qualquer quilombo!), de tentativas de sedução por pelo menos metade das camaradas do batalhão feminino (dispostas aos mais aviltantes sacrifícios pela libertação nacional e mandioca a preço acessível), de recitações, penosas!, dos discursos do senhor general Kúalza de Arrivalga, comandante-em-chefe do PIDE (Projecto Irredentista de Defesa contra o Estalinismo) em Angola, com o intuito de retornar Gonçalo ao redil ideológico dos seus e assim ter preso um inimigo normal, nada parecia funcionar. Só restava atirar-lhe com o MachuN’gu. Basto colosso de portentosa masculinidade, todas as gerações nascia um, dizia-se por aqueles lados, dotado tanto de líbido indiferenciada como fraco de discernimento.
Entra assim o maciço e sempre excitado semi-bípede na palhota e logo dirige a sua raiva viril contra o suado, olheirento, febril e esquálido Gonçalo. Que mal tuge nem muge. Que mal sente as poderosas garras que o viram e reviram, expondo tudo o que haveria a expor, puxando e repuxando todo o que de manuseável pode num corpo existir. Que mal dá pelo hálito fétido e pesado de inconfessáveis, os dotes linguísticos de MachuN’gu não dariam para tanto, perversões. Que nem repara na boca de inchados lábios, donde exala um babado e arfante intento obsessivo, que lhe percorre a pele. Com língua de serradura, como os gatos. Com dentes, tão escuros como a noite e as gentes desta terra, que tudo mordem até ao sangue escorrer vermelho vivo. Única cor luzente numa imensa caverna. E porque das trevas, diz-se, nasce a luz, Gonçalo, na transfiguração que tem sido a sua, já não se crê neste mundo. Tudo o que sente é um turbilhão distante, como se terríveis anjos o transportassem até à indescritível presença. Eis então que a vingança de todas as Áfricas lhe penetra o ser. Mesmo que pela cloaca. E Gonçalo alcança revelações sublimes, tanto quanto penetrantes. E sente o seu interior prenhe de calor divino, que lhe queima as entranhas e o insta ainda mais a ser o profeta nestes tempos.
- “Não mais sou Gonçalo”, sabe intimamente. “Sou Bernardo”, nasce o grito das suas mais recalcadas memórias, “Bernardo das Aflições Interiores!”, porque a palavra de deus queima como magma líquido os que crêem tê-la escutado. Mesmo que a partir do baixo-ventre. E berra “África!!” no paroxismo dos seus deleites e agruras.
Manteria Gonçalo os seus intentos de conversão ao rebanho papal de todo o cafreal? Persistiria na sua ressurreição como Bernardo das Aflições Interiores? Esqueceria MachuN’gu o seu branquinho rezador? Muito provavelmente.

* * *

Manuel de Benevides, secreta mas activamente inspector do PIDE (Painel Intra-departamental de Doutrina Estratégica), há muito que desconfiava das convicções e acções pouco lusitanas de Cilinha. Tinha-a posto sob vigilância permanente, debaixo do olhar sempre ávido e salivar do agente operacional Bacalhau e do seu auxiliar, o Faneca, conhecidos no milieu como a Brigada do Pescado. Infelizmente as qualidades policiais de ambos deixavam bastante a desejar.
- “Mas, ó sôr’eng’nhero”, desculpava-se o agente Bacalhau, “o raio da cabrita é escorredia como o raio duma lampreia”, usando e abusando das metáforas piscícolas, como convinha ao seu nome e natureza. Da facto, Bacalhau e Faneca mais depressa se escapuliam para uma sardinhada, e com sardinha fresca vinda da metrópole! (que os seus contactos no submundo do tráfico clandestino de peixe em Luanda permitiam), do que persistiam nos seus deveres de defesa da Raça e do Império.
Conseguia assim Cilinha, com a perfeita cobertura de não aparentar ser, para o olho desarmado pelo seu corpo esguio mas bamboleante, mais do que uma fútil gazela de famílias arrivistas a tentar branquear-se com o sangue velho de séculos da metrópole, continuar alegre e empenhadamente a jogar o seu perigoso jogo de três convicções proscritas e incompatíveis: a defesa acérrima da destruição do imperialismo fascista e capitalista português pela instauração da ditadura do proletariado; a exaltação telúrica da sua negritude, esquecendo todos as células de pobres e descalços beirões e alentejanos que nela pululam em prol dos congos do seu sangue; a luta visceral pelo matriarcado universal e por sáficas paixões, livres da dominação dos falos e da marca impura dos seus fluidos seminais, contra a verdade primeira do seu lunar sangue derramado. Ou não fosse ela secretária-geral do PIDE (Politburo Indígena Desconstrucionista Eventual).
Mafalda e Cilinha mal se largavam. Fosse nas festas e cocktails, onde representavam a dupla distante e zombeteira de todos os pretendentes, e eram muitos!, mesmo que só para dançar. Fosse em longos passeios pela marginal de Luanda, logo expandidos em excursões a solitárias praias. Areais onde descobriam os recantos das suas formas, os anseios das suas paixões, o fulgor dos seus calores.
E Mafalda dava a pensar em si mesma como Matilde, com vagas memórias de hábitos despidos, corpos femininos nus ostentando apenas simples cruzes de madeira, de coxas apertadas e rezas peito a peito. “Ah!”, pensava, “Os belos tempos do Ramalhão, da madre Joana e do PIDE (Programa Interno de Desentediamento Escolar)”. Cilinha fazia então, com todo o seu esplendor, a sua lânguida língua e doce boca, os seus dedos de delicado mas insistente toque, que Mafalda (ou seria já somente e apenas Matilde?) sentisse que o vértice do seu ser coincidia com a cunha do seu corpo. Conseguia assim Cilinha que Mafalda esquecesse Gonçalo, ou, pelo menos, pensasse nele somente como uma ausência à qual se habituava, como se a vida fosse habitual com a sua ausência.
Conseguiria Cilinha converter Mafalda aos seus deleites? E os planos para fazer dela a sua agente subversiva junto de seu primo Manuel e do Governador teriam bom fundamento? Aguentaria Cilinha manter o seu íntimo em paz, sem entrar numa guerra civil entre as suas convicções marxistas-leninistas (terceiro-mundistas), black power (tendência afro-nativista e não americano-guetizada) e feministas radicais (de separatismo lésbico)? O que lhe valia é que quando a revolução viesse, como haveria inexoravelmente de vir, seria ela a mandar. Muito provavelmente.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

VI

- À fé de quem sou! – vociferou D. Thomaz de Byscaia, caracoleando o seu corcel. – À fé de quem sou! Pois não vos tenho dito e redito que a nossa presença em África é anti-natural, anti-patriótica e anti-histórica e que o nosso Portugal essencial, de Entre-Douro-e-Minho, provê perfeitamente as necessidades logísticas e simbólicas da nação? Não vos tenho eu anunciado e reanunciado o Portugal novo, o Portugal moderno, o d´Aquém-Mar, sob a égide do ceptro de um único rei brigantino, com sede em Guimarães, ou pelo menos ali na zona do Grande Porto?
Mafalda tremia que nem varas verdes, arrimada ao corrimão do magnífico quarto com vista para a deslumbrante baía de Luanda. D. Thomaz e seu corcel pairavam, terríveis, no luar de Março, algures entre o quinto e o sexto andares, suspensos no exterior do Hotel Polana. Mafalda insistira na recepção para ocupar o quarto que fora temporariamente de Gonçalo. Algo da sua presença imarcescível permanecia ali, um aramis ? um old spice? um vétiver de carven, embutido nas almofadas do confortável sofá.
- A menina tem alguma ideia do que é Portugal? O Portugal dos nossos ancestrais, delimitado pelas linhas geo-divinas abertas na terra por mão eterna, o rio Minho, o rio Douro, o rio Mondego, o rio Tejo, o rio Guadiana! Estas são as verdadeiras províncias portuguesas. O nosso ultramar é Lisboa, é o Alentejo, são os Algarves! Para que nos serve África, diga lá a mestra! É imensa, fica longe, não tem pontos de interesse, e ainda por cima somos mal recebidos! É como vê: despesa e maçada!
Na verdade, com todas as vicissitudes – alegrias e tristezas, angústias e felicidades, êxtases e incertezas, altos e baixos - a que fora sujeita nestes últimos tempos, Mafalda fizera-se mais mulher. Botara um belo corpo que lhe enchia o vestido evasé amarelo canário às bolas brancas de pura seda italiana, manga cava e decote redondo, pespontado a amarelo gema-de-ovo que embatia – pois que ela tremia – na barriga da perna bronzeada que terminava na sandália prateada à romana, de atilhos pela perna acima até ao joelho, mostrando os pés bem torneados já quase d´ébano. É verdade que se cafrealizara o seu tanto Mafalda. Todos aqueles impulsos, as ânsias, os ademanes, os langores, donde lhe vinham eles? Do cheiro da terra africana, pois então. Não havia ali culpa alguma, era em toda inocência que Mafalda sonhava.
- Este é o meu credo! – vociferou D. Thomaz de Byscaia. – Abaixo os traidores do integralismo lusitano! Unidade nacional? Mas onde está a fronteira natural? Como é possível a uma terra tão distante, tão diversa, tão alheia, fazer parte integrante da nação? Isto não são perguntas fúteis de um velho gagá, garanto-lhe, isto são questões que eu deixo ao futuro, questões a que o futuro terá de efectivamente responder de acordo com os ditames da consciência nacional. A grandeza de Portugal está em ser maneirinho, em ser manobrável. Ponha os olhos na cidade de Coimbra. Ponha os olhos em Leiria. Isso é que são cidades à escala humana. Vamos agora arranjar lenha para nos queimarmos?
Mafalda já não ouvia. Escutava, era interiormente que escutava, o sermonário de Cilinha. Ali encontrou ela a força para resistir. Proletários de todos os países, uni-vos! Não, não era bem isto. Proletários de todos os quadrantes? Proletários de todo o lado, era assim. O que seria exactamente um proletário? Teria a ver com contracepção? Cilinha é que lhe falava dos métodos anti-naturais de evitar que se cumprisse a vontade divina. E Cilinha dizia-se internacionalista, e isso era uma outra forma de religião, acreditava era noutras coisas, enquanto este velho de longa cabeleira branca encaracolada que caracoleava o seu corcel, trajando à toureiro antigo, de casaca de cetim turquesa com passamanes prateados que era toda uma obra de retrosaria, suspenso no ar com o cavalo branco, sendo o cavalo realmente difícil de explicar, lhe falava num Portugal continental que ela já quase esquecera, e que assimilava a paragens frias e cinzentas e insípidas e inodoras.
Mas de facto, se atentarmos bem, D. Thomaz não era parvo nenhum. Professava uma versão muito sui generis do integralismo lusitano que denominava “essencialismo lusitano”. O credo num um único rei, D. Afonso Henriques, sendo todos os consequentes “uma cambada de bastardos”. Mesmo sobre o nosso primeiro pairava, segundo Byscaya, um certo véu de suspeita, a possibilidade de bebés trocados no berço e imagina-se lá quantas aleivosias mais. Mas, vociferava D. Thomaz, à bout : “- Um homem tem de acreditar em qualquer coisa, nem que seja na mulher, quando ela lhe diz : é teu! Juro-te!”.
- Mas quem é o senhor, ao certo? – sussurrou Mafalda de Borgonha, reunindo as forças, amparada na memória da fortaleza de ânimo de Cilinha.
- Sou D. Thomaz de Byscaya e a menina é a minha filha Mafalda, olha que raio de conversa!
Mafalda desfaleceu de repente. O cabelo, alimentado pelos bons ares, os óleos essenciais de oliva e palma com que Cilinha regularmente os massajava, crescera muito, e vigoroso, espalhando-se-lhe pelas costas, quase chegando à barriga da perna e entrosando-se-lhe por vezes dolorosamente nos atilhos das sandálias. E a lua punha agora nele reflexos prateados.
- Sou uma Borgonha! – gemia Mafalda.
- Qual Borgonha? Andaste lá perto! Tens a terminação! És Byscaya, então eu não sei tão bem? Borgonha é o corno! – E deixou um pouco de vociferar D. Thomaz para lançar uma gargalhada tétrica.
A revelação ia penetrando Mafalda como um raio. Este cavaleiro era seu pai? Então o mordomo, José, com as histórias de velha bruxa, convencendo-a de que era ele o autor da sua vida, mentira! O que ela sofrera em silêncio, sabendo-se uma não-Borgonha, uma falsa nobre, o que a levara a sobrecompensar nos mimos que dera a sua mãe, nas caridades que lhe fizera, sabendo-a um poço de segredos, pecadora, excitante, impenitente. E afinal não seria uma Borgonha, mas era Byscaya! Não era mau de todo! Bem melhor que Passarinho, como o estúpido do José!
- E o seu irmão António – vociferou D. Thomaz - o seu irmão, Pedro, o seu irmão Luís e o outro, o mais novito…
- O Paulo, meu pai?
- A sua mãe era levada da breca, benza-a Deus. Pois é, menina, eu é que os fiz, os outros que os sustentem.
Desvanecia-se lentamente a voz propagandística de Cilinha, para dar lugar a outra, mais forte, mais terrível, que ia reboando nos côncavos do cérebro de Mafalda, aproximando-se sorrateira como um gato, mas temível, temível… “Eu é que os fiz! Eu é que os fiz!”. Era como uma canção de que não nos lembra a letra, só a música obsessiva, que se repete, em semicolcheias medonhas no nosso subconsciente, até nos enlouquecer. E o subconsciente de Mafalda, não tendo um grande pé direito, tornava todos estes sons mais confusos e excruciantes, andando por ali a bater, a bater…“Parece que Gonçalo também não é Cepúlveda…”. Quem o diz? Que voz é esta que agora lhe grita dentro da cabeça “Gonçalo também não é Cepúlveda”? E mais adiante: “Não é Cepúlveda, não senhor, é tão Cepúlveda como eu…”. Mafalda agoniza, enrolada na farta cabeleira. De joelhos, dobrada sobre si própria em posição fatal, tenta apagar a voz e o que ela diz. Estreita a cabeça magnífica com ambas as mãos e deixa escapar um soluço de aflição. Mas a voz achega-se, cada vez mais forte: “Andava aí um fidalgo a comer a D. Beatriz, um tal…”. Um tal? Mafalda não consegue ouvir. O sangue lateja nos ouvidos, dentro de si, no céu-da-boca, na nuca, nos recantos mais recônditos que Cilinha reclamava como só seus. Um nó aperta-lhe a garganta. Parece que adivinha uma fatalidade. O coração grita-lhe o que o cérebro não consegue consciencializar.
- E Gonçalo, meu pai? – pergunta ela, num fio de voz.
- Gonçalo está perdido – vociferou o velho. – Anda aí metido com os pretos nas palhotas, aquilo é uma miséria. Já o caso que ele teve consigo, temos de admitir que era uma grande porcaria. Mas a menina é…enfim…é boa, e homem é homem. Esqueça-o. Meta-se no Anunciação do Naufrágio e volte mas é para Portugal, que isto aqui já deu o que tinha a dar. Zarpa amanhã.
- Quer dizer então, meu pai, que Gonçalo é…
Mas D. Thomaz esfumara-se nos ares angolanos como a areia que nos escorrega por entre os dedos. Ouve-se ainda, do puro empíreo, como um raio de luar quente que é como uma brisa morna do sul que é como um sopro banal que é como um golpe de asa mais fresco:
- E olhe que o Almiro também…
De cabeça perdida, ainda em estado de choque e razoavelmente afogueada, as maçãs do rosto como brasas de inverno, Mafalda atira de revoada umas quantas peças de lingerie para dentro da mala de pele de cobra marchetada com apliques a lápis lazúli que está mais à mão, uma dúzia de vestidos de seda italiana, três ou quatro toilettes para o jantar, para uma saída à noite, para uma soirée dançante, para uma missa de gala, para uma ida ao cinema Império, na Avenida Marechal, a melhor e mais concorrida de Luanda, empurra acessórios e produtos de cosmética para o nécéssaire em crocodilo que era herança da família (ah, pensa ela, numa angústia, num desespero, mas qual família?) e foge precipitadamente do lugar que antecipara feliz e que se mostrara afinal horrendo e onde recebera não uma, mas uma polivalência de revelações.

*

Zarpa Mafalda no Anunciação do Naufrágio pelas sete da manhã. O navio, despejadas as tropas fandangas e a carne para canhão, regressa à capital da metrópole invulgarmente vazio. Arrimada ao corrimão do deque da primeira classe, Mafalda de Byscaya – assim assinara já com se nome de nascimento no livro de bordo – alonga os olhos de longas pestanas castanhas e reviradas para as paragens quentes de África que agora se sente na obrigação de abandonar. Se lhe perguntarem porquê, não conseguirá responder. Viu um velho e um cavalo suspensos no ar, do lado de fora da varanda, o velho mandou-a ir para Lisboa, ela vai. Alguém poderá algum dia acreditar nela? O coração diz-lhe que vá, que o velho é seu pai biológico, e manda a lei que se obedeça aos pais biológicos. Mas leva ainda na bagagem um terrível segredo, pelo menos uma terrível suspeita. O emprenhador-mor, D. Thomaz de Byscaya, temos agora mais de setenta por cento de certeza, é também o pai de…Não, Mafalda não quer tirar a conclusão das premissas. Mas não é ele o pai de toda a gente? Não, grita Mafalda de si para si, não quero saber a conclusão das premissas! Deixem-me viver ainda mais um pouco nesta ilusão de amor, neste sonho de ser a amada do belo e charmoso Gonçalo de Cepúlveda! Deixem-me, iludida e só, pensar nele como um Cepúlveda enquanto penso em mim como…Oh! Como o quê? “Ha!”- gritou-lhe de novo a voz sarcástica. - “É tão Cepúlveda como eu!”. Outra vez a mesma voz! De quem seria ela? Era uma voz aflautada, irritante, como a de uma criança embirrenta que nos quer tirar o nosso brinquedo favorito, o nosso cavalinho de pau com todas as cores do arco-íris, pintado à mão, onde sonhámos os nossos sonhos infantis, onde imaginámos em noites de deslumbramento que seríamos juristas, assessores, literatos, historiadores da Arte…
- Está sozinha no deque, fräulein?
Mafalda acordou do seu devaneio. À sua frente configurou-se uma visão celestial. Em contraluz, na sua farda branca de botões amarelos de capitão-de-fragata, aparecia-lhe, tal anjo descido dos céus, um homem alto, louro, lindo que lhe sorria de uns olhos azuis, meigos, ternamente. Mafalda mordeu a língua na precipitação de responder:
- Não – disse ela – agora está aqui você também.
Arrependeu-se logo do remoque, acaso teria dito de mais. Ele podia ficar a pensar que ela era alguma aventureira, uma qualquer que responde aos homens que a interpelam no deque. Ou fora talvez agressiva? Não, ele não podia pensar que ela era uma dessas mulheres que…Mafalda baixou os olhos, e de caminho observou as longas pernas de…Oh! Iria ele alguma vez dizer-lhe o nome?
- Capitão-de-fragata Heinrich von Schubert – apresentou-se o oficial – bem vinda a bordo do Deutscher Bluthund ! – E fez aquele bater de calcanhares que só os Alemães de certas castas sabem fazer. Mafalda teve um ligeiro aperto mitral, um pequeno incidente vascular, ao ruído de calcanhar contra calcanhar.
- Dóite…Então mas isto não é o Anunciação do Naufrágio?
Os lábios de Heinrich von Schubert abriram-se num sorriso luminoso e terno:
- Não, fräulein, vimo-nos obrigados a afundá-lo, ocupava no porto um espaço territorial de que estávamos muito necessitados.
Na sua aflição, Mafalda atirara a mala para o porão do primeiro navio que lhe aparecera à frente. Convencera-se de que seria obviamente um navio português. A realidade, qual velha desdentada e de hálito pestilencial, mostrava-lhe agora, como num espelho, um amargo desmentido.
Mafalda sentiu de repente a mão molhada. Olhou sobressaltada para o mar que subia até ao deque da primeira classe. Procurou, ansiosa, nos olhos azuis de Heinrich a resposta para a sua apreensão.
- Afundamo-nos? – perguntou, digna.
Schubert olhou-a, sorrindo, numa carícia:
- O Bluthund é um submarino, fräulein!
- Então, para onde vamos? – murmurou Mafalda, rendida ao encanto de Schubert.
- Para baixo? – perguntou ele.
E estendeu-lhe o braço, que ela tomou, sem querer perguntar mais nada.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

VII

Minhas Senhoras e meus senhores, é a hora de – como agora se diz – pôr ordem na casa.
Os tempos estão para isso – são tempos de cabos de esquadra.
Mas há atenuantes: as coisas derraparam, não havia regras, era o vê-se-te-avias generalizado, estava-se mesmo a ver que ia dar ASAE nisto. Até os Deuses já estavam confusos com tantas circunvoluções no enredo. Falo desta história, claro, pensavam que me referia a quê?
Recapitulando: Mafalda já foi apaixonada por Gonçalo; já foi ingénua; já foi Matilde (uma rameira grosseira, ou vice-versa); já foi esquizofrénica viajante; já foi bi-sexual esporadicamente recorrente; e ei-la, reencaminhada pela voz do sangue para o Anunciação do Naufrágio, navio de transporte de razoável envergadura e algum pundonor, a confundi-lo com um reduzido submarino alemão da classe Nerval, o que revela, calculando muito por baixo, acentuada miopia.
Por perplexa que seja a personagem, acompanhê-mo-la, até porque nada mais resta: no moinho da ficção é sempre mais o farelo do que a farinha e só Mafalda apresenta DOP, prazo de validade e cores ainda compatíveis com a colocação no mercado. Formosa desce agora as estreitíssimas escadas a pique da torre do submarino Deutscher Bluthund, numa proeza de movimentação sincronizada, de braço dado com Heinrich von Schubert, que só agora assentou praça neste relato, mas que, em perfeita harmonia com pregressos desenvolvimentos, já foi, pelo menos e sucessivamente:
a) transformista no Traansval, onde fora adestrado nos ademanes e no domínio da lusa língua pelo velho D. Thomaz de Byscaia;
b) corsário free lancer no Zanzibar – onde tomara de assalto, saqueara e afundara o paquete em que, num daqueles férteis acasos da Fortuna, seguia o jovem Gonçalo, acabado de se evadir dos seus captores com o seu companheiro MachuN’gu, em rota para a Terra Santa;
c) concessionário da IA Motors no Burundi – e, et pour cause (disso e do poliglotismo), parceiro de negócio de Manuel de Benevides em certos contratos, mutuamente vantajosos, de abastecimento das administrações provinciais de Sofala, Benguela e Quelimane;
d) assistente de Erich von Stronheim em Hollywood – onde, por via da proficiência na língua de Camões, chegara a dirigir Cilinha Damião, à época uma muito dotada e muito requisitada imitadora de Carmen Miranda.

É dizer que o sobrinho-neto de Franz Peter Schubert – o von veio-lhe da parte da mãe deste – entra nesta história com uma legitimidade de quatro costados. O mesmo se diga, de resto, do Deutscher Bluthund, que começou por ser uma traineira em Agualva-Cacém – onde chegara a ter uma relação logística com a concepção da mãe de Mafalda –, passou depois por um breve e apagado período como porta-aviões da frota suíça – altura em que foi essencialmente utilizado para a pesca à truta que tanto serviu para, em outra latitude, aproximar Gonçalo e a primeira Mafalda –, e fez o estágio para cruzador em vésperas da Iª Grande Guerra, embora tenha sido chumbado e, portanto, reciclado em U-boat nas Novas Oportunidades do cabo de esquadra da época.

De qualquer modo, chega de pormenores pessoais: regressemos ao fiel relato dos eventos que levaram à extinção da vida inteligente na Terra – com a possível excepção de quem assim tão mal a relata. O caso é que, logo após a prodigiosa descida, de braço dado, de Heinrich von Schubert e de Mafalda de Borgonha, aliás, de Byscaia, pelos 11 finos degraus de aço temperado da torre, depois de selada a escotilha e de ganha a profundidade de cruzeiro, os membros da tripulação do acanhado submersível, ne varietur – por terem passado a ter sempre debaixo d’olho (no caso do Karl Max, que é estrábico convergente, d’ambos) as formas de Mafalda, claramente distintas do padrão em uso na marinha imperial, e por descurarem, em consequência, a vigilância sobre as componentes mais estáticas do seu eco-sistema – foram vítimas de uma pandemia de conflitos localizados e de intensidade variável entre as respectivas cabeças e as inevitáveis protuberâncias do equipamento de bordo.

No momento, porém, tirando as intensas cefaleias e o aumento do consumo de analgésicos, ninguém atribuiu importância de maior ao facto, embora devesse ser de suspeitar que ainda poderia sobrevir uma tragédia (invariavelmente prevista para a presença de mulheres em submarinos) dessa soma de efeitos secundários com a perturbação causada por uma presença feminina num espaço exíguo e sobrelotado de testosterona, com a subsequente quebra das rotinas tão essenciais à harmonia subaquática. (Por exemplo: em vez da habitual redução de movimentos, todos os tripulantes circulavam, ao menor pretexto, da proa à popa, e da popa à proa, de modo a roçar o Chanel n.º 5 e os tufos do vestido de seda de fraulein Mafalda).

Mas não nos adiantemos. Por enquanto, tudo se passa no (ventre do) melhor dos mundos, posto que abafado, metalicamente couraçado e 100 pés abaixo do nível do mar: Mafalda seduz-se, com toda a compostura, com o espírito teutónico vertido em Português de lei e, sobretudo, com o aprumado porte marcial e o azul faíscante dos olhos do comandante, e o comandante deslumbra-se com o apurado design de formas e a cor de pele proporcionados pela evolução das espécies mediterrânicas, numa admiração toda darwinista, em jubilosa antecipação de uma miscigenação de cromossomas que revitalize a herança ariana do património genético dos suevos, tornada homeopática por séculos de combinações com gentes de desvairadas estirpes. De momento, porém, as pulsões sexuais do par, cujo crescendo se torna cada vez mais fisicamente perceptível para quem centra atenções nas calças do comandante (o maricas do Adolf Hitler) ou no peito da D. Mafalda (os restantes seis atentos observadores), tem de se sublimar em galanteios (dela) e rubores (dele), gerando um contagioso frémito de excitação no interior do submarino que o faz dilatar perigosamente. Nada de estranho: é um princípio bem estabelecido da física que a excitação dos átomos aumenta as trocas de energia e dilata o volume dos corpos.
Ou talvez a causa desse inchaço tenha sido apenas a não interrupção da descarga de ar comprimido nos tanques de lastro, que seria da responsabilidade do Karl, mas de que ele se esqueceu completamente quando os seios de D. Mafalda se elevaram mesmo à sua frente, projectando distintamente um pequeno dedal nas extremidades. Fosse o que fosse, certo é que, tendo atingido o máximo da expansão estruturalmente consentida, se seguiu uma brusca explosão da tensão acumulada e – rebentadas as guilhotinas de entrada de água nos tanques de lastro – o ar comprimido se escoou bruscamente pela ré, disparando o submarino para a frente no momento em que contornava um obstáculo assinalado pelo sonar. Acto contínuo, foram todos os seus ocupantes sacudidos dos seus lugares e violentamente projectados para as traseiras do submarino, no arranque, e, segundos depois – apenas o tempo de se calarem os gritos da anterior queda –, devolvidos para diante, com o choque brutal que se lhe seguiu, travando, abrupto, o movimento de que vinham animados, e proporcionando um novo coro paradoxal de gritos de dor e pavor. Tínham batido em algo duro – especialmente o maricas do Adolf, que conseguiu fazer o pleno dos choques e das viagens intercalares agarrado ao baixo-ventre do comandante.
Como o embate cortou os circuitos de iluminação, ficaram mergulhados nas trevas, o que, num primeiro momento, até nem era mau para a moral: se a água estivesse a jorrar das fissuras do casco, ninguém fazia questão de assistir. O cofre do submarino só não era uma câmara escura porque, a espaços, se distinguiam as trémulas luzes de emergência perto da posição de comando, sensivelmente a meio da embarcação. Quando habituados a essa parca luminosidade, perceberam que a coluna do periscópio se elevava a 45º graus, sinal de que tinham tombado de borco no fundo do mar. Devia ser por isso que o passadiço entre a proa e a ré, normalmente ao alcance das botas militares, parecia ter-se tornado um desses extravagantes elementos de decoração gay, a dar nas vistas pendurado na parede. Terá sido então que o pânico se instalou, porque ninguém mais pensou nas mazelas que tinha adquirido enquanto o sub se convertera em shaker, nem ninguém se aproveitou da ocasião para testar tactilmente a consistência do corpo de Mafalda – como fizera o marinheiro que a derrubara em idêntico estado de emergência à chegada à baía de Luanda. Mas talvez a extrapolação seja injustificada: no que toca ao tratamento das mulheres não se podem comparar portugueses da Mouraria com alemães, quiçá austríacos, de qualquer lugar.
Heinrich, pelo menos, não pensou – e tinha uma orelha a menos (felizmente a esquerda, a de menor uso nos concertos de ópera de Wagner) e a face direita assente numa superfície extraordinariamente macia e bem cheirosa, que só podia fazer parte da anatomia dela (da Mafalda, não da orelha – não se façam parvos). Tanto quanto pôde o A. divisar na obscuridade, o comandante elevou-se cuidadosamente sobre um fundo de corpos entrelaçados – uma aproximação confusa a um plano americano de uma orgia –, firmando os pés no que lhe pareceu serem os travessões dos beliches, e alcançou a plataforma de comando imediatamente depois do imediato, o tenente Herman. Num instante, toda a mannschaft estava nos seus postos, tentando equilibrar-se nas novas coordenadas de posição. As boas notícias eram não estar a entrar água no interior, sinal de inexistência de danos estruturais – e haver uma mulher naquela prisão. As más notícias eram os motores não funcionarem, os tanques de lastro estarem inutilizados, os medidores de pressão e de profundidade terem passado a zero e o oxigénio dar para pouco mais de 20 horas – se ficassem quietos. No fundo, estavam num caixão colectivo, ainda para mais no fundo.
Não podiam fazer nada para se salvar. Mesmo que conseguissem reactivar a TSF e pedir ajuda, não sabiam se ela poderia ser prestada, nem como, nem mesmo se alguém os conseguiria encontrar antes de se lhes esgotarem as reservas de ar. Situação mais série-B do que isto não consigo inventar: à primeira vista as más notícias ganhavam por 26-zero, e ainda nem tinham chegado ao intervalo.

*

Embora a cena supra fosse ideal para deixar de herança, não é aqui que o relato muda de agulha. Há coisas a esclarecer porque – como até o mais destreinado dos leitores percebe – não foi por acaso que o Deutscher Bluthund usurpou no cais o lugar do Anunciação, dando-se depois ao tormentoso trabalho de se revestir de esferovite pintada em tromp l’oeil a imitar o afundado – o que, já agora, exclui das características entrópicas de Mafalda a miopia; nem foi por acaso que o único oficial da marinha de guerra alemã fluente nesse estranho dialecto meridional falado em Angola de costa à contra-costa se encontrava na ponte, em uniforme de gala, para a receber; nem foi por acaso que a Industrial Light and Magic recebeu uma fortuna, através de companhias fictícias sul-americanas, para efectuar uma sessão de projecção numa tela transparente suspensa em frente do 5º e 6º andares do Hotel Polana, com uma banda sonora a ser emitida em exclusivo para o quarto que seria identificado na recepção como “o do Gonçalo” (e preparado em conformidade), tudo segundo um guião chegado de Lisboa.
Aliás, como se sabe, não há acasos absolutamente nenhuns.

*

Heinrich mandou subir o periscópio. O motor, claro, não funcionava, mas podia acoplar-se uma manivela e fazê-lo subir à custa do Viagra muscular. O caso é que nem assim. O periscópio devia estar enterrado no fundo do oceano. A pergunta de um milhão de dólares era apurar a profundidade a que estariam. Tinham-se mantido a 100 pés desde que se afastaram da costa, mas a detecção de um obstáculo no sonar levara o imediato a dar ordem para subir aos 50. Foi quando o Karl começou a injectar ar nos tanques de lastro e se esqueceu de parar. Ninguém o acusou porque ninguém estava a prestar a devida atenção às leituras dos mostradores: qualquer um podia ter notado o que estava a acontecer. Desde esse momento até ao choque que os projectara para trás tinham passado não mais de quatro minutos, e todos concordaram com a conclusão do comandante: até ao rebentamento dos tanques tinham de ter estado sempre em trajectória de ascensão. Por outro lado, o segundo choque ocorrera segundos depois do primeiro, e não tinha havido outro. A conclusão do comandante era a de que tinham ficado onde tinham batido. Mesmo sendo imponderável o movimento de afundamento, se depois de embaterem no obstáculo e serem projectados para diante não tivessem ficado encalhados, ao afundarem-se, a forma do submarino teria corrigido a inclinação que apresentava e se mantinha constante. O emperramento do periscópio demonstrava que o segundo choque fora com o fundo. Havia uma bela possibilidade, portanto, de estarem a três ou quatro metros da superfície. O óbice óbvio era não haver registo, nas cartas marítimas, de nenhum banco de areia ou recife na sua rota: tanto quanto delas se sabia, estavam em mar alto. Por outro lado, o sonar tinha detectado um obstáculo – por isso tinham subido para 50 pés –, e nem sempre as cartas das costas africanas eram plenamente fiáveis.
Mesmo que estivessem perto da superfície, isso não garantia nada: se abrissem a escotilha o oceano entraria de roldão, e poderia ser impossível, mesmo só com um metro de água por cima, sair do submarino antes de ele se encher. Só se pudessem aproximar-se da saída à medida que a entrada de água diminuísse de ímpeto, podiam ganhar impulso suficiente para a transpor, um de cada vez. À cadência de um a cada 10 segundos, o último precisaria de 1m 20s de fôlego extra, mais o que o demorasse desde o submarino à superfície. Não era fácil, mas não era impossível. É claro que depois disso podiam vir outros problemas: ficar a boiar no oceano, a 80 milhas da costa, é sair da frigideira para cima do lume, mas, verdadeiramente, não havia escolha: ficarem fechados não iria melhorar-lhes a situação. Franz, Fritz e Wilhelm, os mecânicos de bordo, pediram, e obtiveram, 15 horas para tentar recuperar os motores e, com eles, tentar libertar o submarino, mas desistiram ao fim de uma: os danos eram irreparáveis.
Heinrich sugerira que os lugares na linha de fuga fossem sorteados, mas como o primeiro era de Mafalda, e ele era o único que conseguia comunicar com ela, o segundo foi-lhe atribuído. Karl, sentindo-se culpado, recusou outro lugar que não o último e, durante a hora da tentativa de reparação dos motores, Adolf tentou sucessivamente comprar o terceiro, o quarto, o quinto ou o sexto lugares, que eram os que estavam à sua frente. A última tentativa, com o imediato Herman, foi especialmente mal sucedida porque este achou tal conduta imprópria e prometeu expulsá-lo da marinha. Heinrich narrou os últimos eventos no diário de bordo, explicou os procedimentos a uma Mafalda aterrada (impropriamente, dadas as aquáticas circunstâncias), distribuiu lugares e recomendações para resistir ao ímpeto da iminente inundação, e, depois de uma oração colectiva, deu autorização a Karl para abrir a escotilha.
Estavam todos preparados para a entrada de água, não para a entrada de sol – mas foi a luz que entrou de jorro pela abertura virada a poente do corpo metálico. Como o perceberam logo que, em festa e incredulidade, saíram do seu bojo, este tinha adornado na costa de uma frondosa ilha. O jacto de ar libertado pela explosão das eclusas dos tanques de lastro deve ter dado ao submarino, já muito perto da superfície e da linha de terra, um impulso ascendente que o projectou para cima desta, em vez de contra ela. De facto, como todos perceberam, sem a distracção de Karl as consequências podiam ter sido bem piores. Afinal os dados de pressão e de profundidade não tinham sido repostos a zero por deficiência de funcionamento, mas porque essa era a sua devida leitura. Estavam salvos, embora tivessem outros ordálios pela frente: eles não o sabiam, nunca o saberiam, mas quase um século depois outros náufragos chegariam à mesma ilha e a sua odisseia, muito parecida com a deles, tornar-se-ia uma das séries televisivas de culto da primeira década do Século XXI.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

VIII

Na manhã seguinte, já era oficial em todo o submarino: aquela encantadora rapariga portuguesa, cheia de curvas e com tudo no sítio , certamente de sangue tórrido, era a namorada attitrée do capitão-de-fragata. Passaram sem mais hesitações nem conversas a partilhar os aposentos dele, e foi-lhe nomeado um maçarico para estar exclusivamente ao seu serviço para satisfazer todo e qualquer desejo da primeira dama durante o longo tédio das viagens debaixo de água. A verdade é que todos os maçaricos se puseram logo em bicos dos pés para serem o feliz eleito, porque assim que esta aventura começou já não havia na tripulação quem não estivesse perdido de amores pela gaja boa do chefe. Até o seu sotaque carregado a tentar falar o alemão que Schubert lhe ia ensinando lhes derretia completamente o coração. Aquela mulher era mesmo uma verdadeira mulher, direita como uma bétula, flexível como um junco, delicada como uma rosa de toucar e forte como um carvalho centenário, ainda por cima exótica como uma palmeira e obviamente disposta a tudo. Até o capitão, regra geral muito estrito nos seus comportamentos e sempre o primeiro a chegar a toda e qualquer formação, com a felicidade deixou abrandar suavemente a impiedade das regras de bordo e passou, por exemplo, a ficar na cama de manhã para tomar o pequeno-almoço com ela num tabuleiro de prata recheado primorosamente pelo maçarico com sorte. Aliás, note-se, de passagem, que o fascínio que Mafalda exercia sobre aqueles homens era tal que acabou por ser preciso rodar os maçaricos de serviço permanente à fraulein dia sim dia não, por forma a todos ficarem satisfeitos e se manter a bordo um ambiente saudável de camaradagem. Chegava ao ponto de, nos momentos de maior delírio nocturno, Schubert lhe ordenar que gritasse, gritasse, que gritasse com toda a força e dissesse palavrões em português – ordens essas que, aliás, Mafalda acatava com todo o prazer. Adorava berrar e dizer palavrões nos grandes paroxismos da penetração, mas sempre lhe tinham dito que isso não era próprio de uma menina tão bem nascida. Agora, longe do mundo e rodeada de homens de uma civilização que lhe era totalmente desconhecida, podia por fim libertar por completo as suas feras e descobrir-se até onde nunca tinha chegado. E para isso Schubert era um parceiro perfeito, porque tinha uma imaginação absolutamente desabrida, não havia nada que não quisesse experimentar, e possuía um apetite aparentemente insaciável. O que nos remete para a tal história dos gritos e palavrões a altas horas da noite. Destinava-se o expediente a permitir que toda a tripulação ouvisse, e assim se lembrasse dos grandes prazeres do sexo, e assim mantivesse a moral elevada e o espírito alegre. Todos sabiam que tinham partido de África para uma missão extremamente perigosa. Quanto mais gozassem durante a viagem, melhor a executariam à chegada. Mafalda estava consciente disto e esmerava-se. Só não se pavoneava nua por todo o submarino porque o chefe era cioso das suas posses e não autorizava.
Bom, a verdade é que se transpirava bonomia a bordo daquele submarino alemão, por muito incompatíveis que estas duas palavras justapostas possam parecer.
Em grande medida, isto estava a acontecer porque Mafalda, ao fim de tantos anos de vários tipos de sofrimento, agora se sentia livre e estava feliz.
Schubert revelara-lhe píncaros de prazer sexual que ela nem suspeitava que pudessem existir. Iniciara-a nos prazeres da liamba, que os alemães traziam de África em grandes quantidades. Mas o crucial da questão ia muito mais fundo que isso, como o sabor incomparável das maçãs de inverno. A sua relação com o capitão-de-fragata completamente estrangeiro libertara-a finalmente de Gonçalo. Chegava a passar dias inteiros sem nunca pensar nele. Quando pensava, era mais na linha de encolher os ombros e dizer para consigo “olha só o que eu sofri por causa daquele palerma daquele missionário que nem sequer me fodia como deve ser”. Contou uma vez a Schubert a história do que fora a grande tragédia amorosa da sua vida, e o capitão-de-fragata comentou que os homens portugueses deviam ter um lado negro ainda mais negro que o dos alemães, proeza nada fácil de atingir.
E não era tudo. Ali, num mundo tão diferente daquele onde nascera e vivera até aí, a executar tarefas de cálculos náuticos para os quais descobriu ter imenso talento, estava finalmente livre de todos aqueles dares e tomares da família, da importância dos apelidos, das regras rigorosas sobre o que é que uma menina de sangue tão nobre faz ou não faz, de tios, e padrinhos, e mãezinhas, e recepções bem comportadas onde servia de papel de embrulho e se aborrecia como um peru em vésperas de Natal. Tudo o que agora notava que lhe pesara nos ombros a vida inteira tinha desaparecido. Estava por fim a descobrir-se a si própria, e a notar que, na realidade, era uma mulher sensual amiga do prazer, naturalmente endorfinada e predisposta para a felicidade, perfeitamente capaz de independência e de progresso intelectual. Era bom. Era mesmo muito bom. Na sua nova condição, Mafalda resplandecia.
Até que Schubert lhe anunciou que estavam prestes a chegar ao tal destino perigoso, e lhe perguntou com a maior delicadeza se ela seria capaz de dar um grande beijo a cada rapaz, para lhe dar coragem.
-- Qual beijo! -- respondeu Mafalda, toda despachada – Faz-se mas é já para aqui uma geral, que eles bem merecem e eu, por ti, não me importo nada desde que estejas a ver.
-- Não – respondeu o capitão-de-fragata com firmeza – O beijo já está mesmo no limite, e é só mesmo porque metade destes rapazes vai morrer de certeza. A geral está fora de questão.
-- Mas porquê? -- perguntou Mafalda, surpreendida com a súbita veemência dele.
-- Porque isso nunca ficaria bem na vida da Senhora Heinrich von Schubert – respondeu ele sem a mínima hesitação.
-- Quem é essa? -- perguntou Mafalda, já muito confusa.
Ele pôs-lhe as mãos nos ombros, puxou-a para mais perto de si e olhou-a firmemente nos olhos.
-- Serás tu a partir de amanhã, se quiseres. Mafalda, estou a pedir-te em casamento. Sempre evitei compromissos com mulheres, mas, desde que te conheci, tudo me leva cada vez mais a crer que, os dois juntos, formamos uma equipa imbatível. Então? Queres ser a minha companheira, amante e amiga durante o máximo de tempo possível?
No dia seguinte Mafalda distribuiu uma generosa rodada de linguados perfumados e saborosos a todos os rapazes, e a seguir foi ao quarto vestir o único vestido branco que trazia nas malas. Por acaso era todo vaporoso, sem alças, e com a saia muito rodada, o que o tornava deveras adequado à situação. Enfeitou-se com o colar de pérolas de quatro voltas, mas depois achou que, para celebrar a sua parceria com aquele homem de acção, devia mas era ir de cabelo solto ao vento, sem qualquer maquilhagem e nem mais uma jóia. A ideia era formalizar a ruptura com a sua vida antes de entrar no submarino alemão.
Schubert esperava-a no deck com a farda de gala, e a boda, celebrada pelo capelão de bordo vestido à civil, foi deliciosa. A marujada estava toda de lágrimas nos olhos. Não puderam trocar alianças, mas fizeram os votos todos. Quando chegou a parte de o noivo poder beijar a noiva depois de oficialmente declarados marido e mulher, toda a gente bateu palmas e desatou a soltar gritos de guerra, depois do que um começou a tocar concertina e os outros se puseram a dançar. Os recém-casados entraram na dança e Mafalda ainda tratou de distribuir mais uns bons linguados às tropas. Noite de núpcias e lua de mel estavam obviamente fora de questão, mas ainda deu para os dois recolherem ao quarto durante três horas. Os outros ficaram cá fora a cantar uma serenata afinadíssima, enquanto eles, lá dentro, completamente pedrados, praticavam sexo tântrico em silêncio absoluto.
Na madrugada seguinte havia terra à vista.
-- Vamos começar o desembarque, anunciou Schubert à sua esposa feliz – O chefe é o último a sair, e, dadas as circunstâncias, é melhor a mulher do chefe vir com ele. Veste uma farda e anda lutar comigo. Tenho a certeza de que te vais sair bem. Até lá, porque favor, fica aqui sossegadinha no quarto e não saias. O Helmut traz-te o pequeno almoço. Mas não metas conversa. Estas manobras são extremamente complicadas e toda a gente tem que estar no máximo da sua concentração para a missão não abortar antes mesmo de começar.
Mafalda, que desde que falava fluentemente alemão andava a devorar o Doutor Fausto com toda a gula e ainda não tinha chegado ao fim, concordou imediatamente. Mas não pôde deixar de perguntar.
-- Ó parceiro, diz-me só o que é que estamos exactamente a fazer, só para eu não meter água.
O feliz esposo encostou-se à porta numa fracção de segundo de hesitação. Depois endireitou-se e olhou para para a mulher resplandecente de orgulho.
-- Estamos a ter o privilégio de sermos os eleitos para iniciar a invasão da Rússia!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

IX

O submarino atracou – se é que os submarinos atracam.
Os nossos heróis iam invadir a Rússia. Porquê? Não sei bem. Suspeito que haverá um qualquer acontecimento histórico por detrás, já que este me parece todo ele um romance apostado na História dos Homens, a que se acrescenta, misturando bem, mas não o suficiente para que se possam sentir, ao mordiscar esta Maçã de Inverno, a pitada de non-sense, o gosto ácido das bagas de suor que escorreram da testa da escritora e algumas baforadas de tabaco, tão necessário foi ele à imaginação.
Mafalda sentia-se em funiscas pela participação naquele extraordinário evento. Quantas mulheres podiam orgulhar-se de ter estado na primeira linha da invasão da Rússia, saindo pela mão do amado das entranhas de um submarino, que depois de ter atravessado o Pacífico, o oceano que banhava em 1974 a baía de Luanda, entrara pelo Mediterrâneo adentro, passara junto ao bico da bota italiana (fora nessa ocasião que Schubert comprara a dois mafiosos sicilianos os sapatos Prada, salto agulha, elegantíssimos, que ela tinha agora calçados), deixara para trás as ilhas gregas e chegados ao Mar Cáspio, subira Volga acima, até Tver, às portas de Moscovo, para ser testemunha e penhor daquela ocasião irrepetível?
Schubert segurava a mão de Mafalda, quando ambos emergiram do submarino e sentiram o vento fresco na tocar-lhes na cara.
Era aquilo a Rússia, portanto.
Mafalda emudeceu. Vista dali, a Rússia parecia-me muito com Alhandra. Nossa heroína se sentiu defraudada: tinha seguido Gonçalo, aka, Bernardo até África; banhara-se nas águas calientes do Pacífico; deixara a sua querida Cilinha estendida no areal da baía de Loanda, porque lhe aparecera em sonhos um velho de hirsuta cabeleira e traje de luces, que a incitara ao regresso à metrópole. Errara no navio e embarcara num submarino. Descobrira-se mulher por meio de Schubert. E agora? Agora estava encalhada no Mouchão da Póvoa, avistando Alhandra e Alverca. Vila Franca de Xira e Sacavém.
Se tinham chegado à Sicilia (os sapatos Prada não enganavam!), como era aquilo possível?
- Bertinho, isto não é a Rússia. – balbuciou. – Estamos no Tejo.
A sua vida aventurosa terminava ali. Aquele era o seu navio de regresso. A sua nau.
Não, não, não.
Mafalda pensou do alto dos seus sapatos de salto agulha que não, não, não: ela e Schubert simplesmente não podiam ter feito aquela viagem toda – amor desenfreado em alto mar, espiados por garoupas e polvos – para chegarem à banliosa de Lisboa e descobrirem a sua condição dupla de retornados e de personagens do romance As Naus.
Bertinho encarou-a estupefacto. Julgava que aquele rio em que se encontravam era o Volga. O desmazelo e desconsolo daquilo que dali se avistava SÓ podia ser a Rússia!
- Repara, querida. Isto é a Rússia. Atenta na arquitectura. Só num sítio como a Rússia poderia haver tais mamarrachos!
A querida atentou: armazéns abandalhados, casas malhadas e dispersas pelos montes e vales; a linha de comboio correndo ao longo do rio. E, sobre tudo, uma cobertura pálida, azul-cinzenta, como icing sugar.
Mafalda recordava-se de ter estado ali há algum tempo, visitando Maria Armanda, uma prima afastada.
Maria Armanda Sardica Borgonha de Mello tinha vindo do fundo do distrito de Portalegre para Lisboa, com o objectivo de estudar Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, antes de se casar com Don Benito Plátano de Almíbar, alcaide de Valência de Alcântara.
Era a única herdeira dos Sardica Borgonha de Mello, que tinham prosperado através do tráfico de café, latas de pêssegos, caramelos de pinhão, tachos e pirexes e, mais recentemente, de pílulas contraceptivas e pensos higiénicos, vendidos a preço de ouro, a um grupo restrito da alta sociedade do distrito de Portalegre. De facto, tinha sido a sua mãe, Isilda Sardica a iniciar o negócio do contrabando.
No início dos anos 50, Isilda era uma estampa. Oxigenava o cabelo e pintava os lábios de vermelho. Tinha o ar dramático de espanhola salerosa e de mulher independente. Por uma tarde de tourada, em Monforte, João Borgonha de Mello fazia a lide na garupa do seu cavalo Ruço – e topou-a no meio da multidão. Isilda tinha uma flor rubra no cabelo descolorido e trajava um vestido obscenamente escarlate. João viu-a a preto e branco, como num filme: achou que era a Marlene Dietrich. Só por isso espetou feroz um ferro no touro, e tirou o chapéu de três bicos da cabeça, cumprimentando a beldade, enquanto fazia o Ruço voltear a trote pela arena.
Isilda, que não era nada parva e bem conhecia o seu poder junto dos homens, no final do espectáculo encaminhou-se até ao Retiro do Forcado, onde todos comemoravam. Que impressão causou junto daqueles homens brutos, que entretinham o seu tédio em faenas! Interessava-lhe apenas um – o toureiro que a cumprimentara e que, não sendo bonito, também não era feio. Que não tendo dinheiro, nem posses, tinha um nome suficientemente sonante, pomposo e longo para a tornar presença regular e aceite, junto do pequeno grupo de senhoras influentes da região.
João amou Isilda loucamente. Isilda amou João à sua maneira. Casaram daí a seis meses, em cerimónia simples. Ela de flor de laranjeira imaculada, embora não fosse virgem há muito. Ele de abas de grilo. Os Borgonha de Mello deploraram a união, mas, depauperados, não conseguiram demover o filho da ideia fixa de desposar aquela espécie de mulher bandoleira, cujo pecúlio parecia aumentar diariamente. Em 1954 nasceu Maria Armanda. Os Borgonha de Mello ficaram duplamente pacificados nessa altura, incapazes de manterem a birra perante os braços roliços da recém-nascida.
Em 1964, aos 10 anos, Maria Armanda entrava no colégio da Congregação do Coração Saudável de Maria, onde ficou até completar os 18 anos. Muito cedo, compreendera que o dinheiro lhe podia comprar a instrução e que a instrução lhe permitia sair da casa paterna, passar longos meses ausente, e não dar cavaco a ninguém.
Era uma jovem baixa e bovina, de pestanas longas, ar doce e que andava compassada e serenamente. Tendo sido criada no meio do campo e da serra, entre a rica casa de família e o chiqueiro onde foçavam os porcos e o colégio católico, Maria Armanda era uma brilhante fusão das heranças genéticas e culturais dos progenitores. Se lhe falhava o ar de femme fatal materno, tinha a graça de amazona. Se não era tão hábil no manejo das convenções sociais como o pai, era suficientemente industriosa e inteligente para ninguém tomar por má educação a sua inépcia. Podia viver no palácio ou no casebre: adaptar-se-ia de igual modo e com igual facilidade.
Em 72, chegou a Lisboa e instalou-se num pequeno apartamento na Avenida de Roma. Passou o primeiro mês na Faculdade de Letras e o resto do ano a fazer amor com um candidato a engenheiro do Técnico, esquecendo o bom casamento que tinha sido apalavrado com o alcaide de Valência de Alcântara. Juntos decidiram ir morar para Sacavém com a mesada que Maria Armanda recebia dos pais. Juntos decidiram arriscar uma vida no bombismo e derrubar o regime.
Mafalda, sabendo da vida atribulada da prima, que lera Marx e Engels, Nietzche e Habermas, Wittengstein e Benjamin, e que se dedicava no subúrbio doutrinar e iluminar a classe operária, foi visitá-la um dia. Regressou à sua casa de Cascais horrorizada: Maria Armanda habitava um rés-do-chão em São João da Talha. Era um bairro sem graça, em tons de castanho, com ruas mal acabadas e poeirentas. O piso cheirava a comida retardada e na cozinha apinhavam-se tachos por lavar. A cama, onde dormia um gato gordo, era um desalinho numa das divisões. Colados ao lavatório da casa de banho, Mafalda surpreendeu pêlos de barba naufrágos. Maria Armanda, de cabelo curto, movimentos lentos e bovinos, falava da Revolução e do mundo que colapsaria. Defendia bombas e o caos. Pior que tudo: afirmava, veemente, que não se importava nada de perder a vida de privilégio que até ali levara. Reiterava as suas raízes populares, lembrava todos os antepassados que tinham sido contrabandistas fronteiriços, e deixara de usar o nome do pai. Maria Armanda não era já uma Borgonha de Mello. Era uma Sardica. E como tal, ser operária na fábrica de confecções da Termoteb, pertencer à grande família proletária, parecia-lhe justo e adequado.
E agora, Mafalda despertava para estas memórias quando a voz de um dos moços de bordo anunciou:
- Errámos os cálculos, herr Capitão! Perdemo-nos no mar!
A voz de Schubert, grave e fria:
- Como é que é possível?!
- Capitão, as coordenadas estavam erradas. Depois da Sicília voltámos para trás e fizemos todo o Mediterrâneo de novo… Entrámos depois no Estuário do Tejo… E chegámos aqui… Talvez a nossa presença seja necessária, com a Revolução e tudo…
Revolução? Que Revolução? Mafalda estava enervada. Agora ouvia falar de uma Revolução. Não bastava não estarem na Rússia e terem desaguado em Portugal – como Portugal tinha ainda tido uma Revolução. Mais uma vez a memória da Maria Armanda, bombista, derrubando o regime e cortando cabeças, sanguinária.
- Cálculos errados? Mas como? – Schubert lembrou-se então que fora Mafalda quem se empenhara em fazer cálculos, revelando uma inusitada capacidade matemática. Agora, tudo ficava claro. Era sobejamente conhecida a inépcia lusitana para o cálculo. Talvez se lhe tivesse posto um sextante nas mãos tivessem chegado à Rússia. Ou se tivessem navegado olhando para as estrelas. O capitão sentia-se furioso e defraudado. Provavelmente, a mulher que amava tinha planeado aquilo tudo: não se enganara coisíssima nenhuma em Luanda e subira a bordo do Deutscher Bluthund, consciente de que se tratava do submarino que tinha por missão invadir a Rússia. A bordo, deixando entrever os mamilos espetados sob as camisas de seda com que gostava de aparecer na kitchenette, onde todos se juntavam à hora de jantar, Mafalda seduzira-o e à tripulação – só Adolf resistira àqueles doces encantos feminis, àquelas macias formas redondas, àquela pele fresca e rosada e tão cheirosa, àqueles cabelos sempre tão alinhados, excepto quando gritava obscenidades, presa sob o peso do corpo de Heinrich von Schubert. Recordando esses momentos, Schubert experimentou um enrubescimento e intumescimento. Ficou consternado. Se estavam encalhados ali – o grumete falava em Mouchão da Póvoa – a culpa era dela!
Porém, o soldado tinha razão: em Abril tinha havido uma Revolução naquela ponta da Europa. Era agora Dezembro. Heinrich von Schubert, que recebera a informação através do PRM, nada comentara com Mafalda. Uma mulher inquieta com a situação política do seu país era algo completamente dispensável a bordo daquele submarino. Para além do cálculo de coordenadas, Mafalda tinha apenas uma missão ali: ser uma amante perfeita e uma alegria para as tropas. Livre naquele espaço exíguo ela assim se descobrira e nisso se devia empenhar durante toda a missão. Não era por acaso que, mesmo antes do casamento oficializado, Mafalda só tinha ordem para andar de saia e sem cuequinhas pela embarcação. Heinrich solicitava-a; ela obedecia.
- O melhor seria ir a terra. Contactar com a população. A menina Mafalda…
Schubert pesou os prós e os contras. Pegou nas mãos de Mafalda, puxando-a para si: as memórias da cópula voluptuosa e terna tinham-lhe desfeito a fúria. Aproximou o seu rosto escanhoado e fresco do dela. Viu-lhe os dentes a brilhar entre os lábios secos do cieiro. Mesmo assim, continuava gira e sexy.
- Sim, Mafalda… tu podias… afinal és portuguesa… compreendes, meu amor?
Mafalda não compreendia. O que estariam aqueles dois a insinuar? Explicaram-lhe então: queriam que ela fosse a terra e voltasse a bordo com notícias dos eventos recentes no país. Falaram do derrube do regime e de famílias em fuga para o Brasil e para Espanha. Mencionaram a ameaça comunista. Ela, como portuguesa, podia obter informações fidedignas a respeito da situação. Podia procurar um amigo, um familiar, inteirar-se. Talvez Gonçalo tivesse voltado de África e tivesse participado no golpe militar. Precisavam de ter certezas, de planear uma acção, caso se considerasse necessário: e se um bando de marinheiros alemães, calcorreando as ruas de Lisboa, levantava suspeitas – ela, tão bonita, com a sua tez pálida, devido à longa permanência sob o oceano – bem podia passar também por uma revolucionária que tinha agora saído da prisão. Que tivesse andado perdida pelo mundo e regressasse a casa. Não era muito diferente do que realmente se tinha passado, pois não? Que despisse a farda que tinha vestida, porque não fazia sentido nenhum desembarcar na margem do Tejo naqueles preparos. Que usasse um dos vestidos que tinha numa das malas. Qualquer coisa simples, que não desse nas vistas.
Mafalda obedeceu. Enquanto isso, os militares preparam por isso um bote insuflável, amarelo, movido a força de remos.
Schubert ajudou-a a subir a bordo. Mafalda de Byscaia desequilibrou-se um pouco; os saltos afundaram-se na moleza da embarcação. Tinha vestido um sobretudo antracite, sério, sobre um vestido preto, de fazenda. As pérolas que herdara da mãe cintilavam no pescoço. Tinha meias de liga. E os sapatos. Os sapatos que eram a sua perdição e a de Schubert. Os sapatos que Schubert lhe pedia para não tirar quando, no camarote, a navegava, onda cavalgando outra onda, polvos e garoupas espiando-os pela escotilha. Mafalda sentiu uma lágrima a querer rebentar nos olhos. Engoliu em seco. Temeu que aquela cambada de alemães ingratos se estivessem a livrar dela, deixando-a despejada na margem, enquanto eles se faziam ao mar. Conjecturou que tudo aquilo fora uma manobra, um divertimento. Que aquele casamento celebrado a bordo do submarino era uma fantasia, uma palhaçada. Schubert não a amava. Ela que tudo tinha feito para manter a tripulação animada! Que dera força aos marinheiros colectiva e individualmente, na casa das máquinas, quando Bertinho dormia as suas sestas…
Schubert remou até à margem e saltou para a água, quando foi necessário amarrar o bote ao ancoradouro das OGMA. Tinham feito a viagem em silêncio, Mafalda sempre de beicinho.
- Ficas comigo? – perguntou com uma voz muito sumida, quando ele a enlaçou para a ajudar a sair da frágil embarcação.
Heinrich von Schubert queria responder que não, porque não podia deixar o submarino que comandava ao deus-dará; mas sentindo o calor da mulher amada, colada ali ao seu peito, não foi capaz.
- Tenho de mandar uma mensagem em código morse para o submarino. Vou mandá-lo embora. É claro que fico contigo.
Mafalda sorriu. Estava feliz. Se aquele era o seu navio de regresso, ainda bem que desembarcava. Procurou os lábios do amado e beijou-o lentamente. Era um novo princípio aquele se que lhes afigurava.
Procuraram uma estrada que os conduzisse até algum sítio - Lisboa seria o ideal. Aí, Heinrich von Schubert poderia procurar um PEM e remeter através de um sistema de pancadinhas a mensagem à tripulação, ordenando-lhes que refizessem os cálculos e tentassem chegar ao porto de mar de Cuxhaven, no Mar do Norte. Depois, telefonaria ao Almirante Hans Fernsehen, explicando o rumo dos acontecimentos.
- O velho Almirante não vai ficar contente …- pensou com os botões da sua farda.
Caminhavam lado a lado por uma espécie de vereda no meio das ervas. O capitão suspirava, vendo os sapatos de Mafalda enterrarem-se na lama. Uns sapatos tão caros, que lhe ficavam tão bonitos, a perna tão torneada, a vontade de a foder ali, no meio da erva molhada e fria, naquele descampado desconfortável, inóspito, onde só à distância se avistavam barracões imundos de fábricas.
- Ah! Não acredito!
Era Mafalda. Ele, que deambulava em sensuais e lúbricas cogitações, pensara num salto partido: mas Mafalda já não estava ao seu lado. Corria na direcção de um grupo de pessoas que hasteavam bandeiras do PCP e gritavam palavras de ordem. À frente do cortejo uma mulher baixa e com passos bovinos sorria, brandamente. Era para ela que Mafalda se dirigia apressada, ignorando a lama nos sapatos Prada, não se importando com os sapatos Prada, abraçando a outra numa efusão que Heinrich desconhecia na amada.