O submarino atracou – se é que os submarinos atracam.
Os nossos heróis iam invadir a Rússia. Porquê? Não sei bem. Suspeito que haverá um qualquer acontecimento histórico por detrás, já que este me parece todo ele um romance apostado na História dos Homens, a que se acrescenta, misturando bem, mas não o suficiente para que se possam sentir, ao mordiscar esta Maçã de Inverno, a pitada de non-sense, o gosto ácido das bagas de suor que escorreram da testa da escritora e algumas baforadas de tabaco, tão necessário foi ele à imaginação.
Mafalda sentia-se em funiscas pela participação naquele extraordinário evento. Quantas mulheres podiam orgulhar-se de ter estado na primeira linha da invasão da Rússia, saindo pela mão do amado das entranhas de um submarino, que depois de ter atravessado o Pacífico, o oceano que banhava em 1974 a baía de Luanda, entrara pelo Mediterrâneo adentro, passara junto ao bico da bota italiana (fora nessa ocasião que Schubert comprara a dois mafiosos sicilianos os sapatos Prada, salto agulha, elegantíssimos, que ela tinha agora calçados), deixara para trás as ilhas gregas e chegados ao Mar Cáspio, subira Volga acima, até Tver, às portas de Moscovo, para ser testemunha e penhor daquela ocasião irrepetível?
Schubert segurava a mão de Mafalda, quando ambos emergiram do submarino e sentiram o vento fresco na tocar-lhes na cara.
Era aquilo a Rússia, portanto.
Mafalda emudeceu. Vista dali, a Rússia parecia-me muito com Alhandra. Nossa heroína se sentiu defraudada: tinha seguido Gonçalo, aka, Bernardo até África; banhara-se nas águas calientes do Pacífico; deixara a sua querida Cilinha estendida no areal da baía de Loanda, porque lhe aparecera em sonhos um velho de hirsuta cabeleira e traje de luces, que a incitara ao regresso à metrópole. Errara no navio e embarcara num submarino. Descobrira-se mulher por meio de Schubert. E agora? Agora estava encalhada no Mouchão da Póvoa, avistando Alhandra e Alverca. Vila Franca de Xira e Sacavém.
Se tinham chegado à Sicilia (os sapatos Prada não enganavam!), como era aquilo possível?
- Bertinho, isto não é a Rússia. – balbuciou. – Estamos no Tejo.
A sua vida aventurosa terminava ali. Aquele era o seu navio de regresso. A sua nau.
Não, não, não.
Mafalda pensou do alto dos seus sapatos de salto agulha que não, não, não: ela e Schubert simplesmente não podiam ter feito aquela viagem toda – amor desenfreado em alto mar, espiados por garoupas e polvos – para chegarem à banliosa de Lisboa e descobrirem a sua condição dupla de retornados e de personagens do romance As Naus.
Bertinho encarou-a estupefacto. Julgava que aquele rio em que se encontravam era o Volga. O desmazelo e desconsolo daquilo que dali se avistava SÓ podia ser a Rússia!
- Repara, querida. Isto é a Rússia. Atenta na arquitectura. Só num sítio como a Rússia poderia haver tais mamarrachos!
A querida atentou: armazéns abandalhados, casas malhadas e dispersas pelos montes e vales; a linha de comboio correndo ao longo do rio. E, sobre tudo, uma cobertura pálida, azul-cinzenta, como icing sugar.
Mafalda recordava-se de ter estado ali há algum tempo, visitando Maria Armanda, uma prima afastada.
Maria Armanda Sardica Borgonha de Mello tinha vindo do fundo do distrito de Portalegre para Lisboa, com o objectivo de estudar Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, antes de se casar com Don Benito Plátano de Almíbar, alcaide de Valência de Alcântara.
Era a única herdeira dos Sardica Borgonha de Mello, que tinham prosperado através do tráfico de café, latas de pêssegos, caramelos de pinhão, tachos e pirexes e, mais recentemente, de pílulas contraceptivas e pensos higiénicos, vendidos a preço de ouro, a um grupo restrito da alta sociedade do distrito de Portalegre. De facto, tinha sido a sua mãe, Isilda Sardica a iniciar o negócio do contrabando.
No início dos anos 50, Isilda era uma estampa. Oxigenava o cabelo e pintava os lábios de vermelho. Tinha o ar dramático de espanhola salerosa e de mulher independente. Por uma tarde de tourada, em Monforte, João Borgonha de Mello fazia a lide na garupa do seu cavalo Ruço – e topou-a no meio da multidão. Isilda tinha uma flor rubra no cabelo descolorido e trajava um vestido obscenamente escarlate. João viu-a a preto e branco, como num filme: achou que era a Marlene Dietrich. Só por isso espetou feroz um ferro no touro, e tirou o chapéu de três bicos da cabeça, cumprimentando a beldade, enquanto fazia o Ruço voltear a trote pela arena.
Isilda, que não era nada parva e bem conhecia o seu poder junto dos homens, no final do espectáculo encaminhou-se até ao Retiro do Forcado, onde todos comemoravam. Que impressão causou junto daqueles homens brutos, que entretinham o seu tédio em faenas! Interessava-lhe apenas um – o toureiro que a cumprimentara e que, não sendo bonito, também não era feio. Que não tendo dinheiro, nem posses, tinha um nome suficientemente sonante, pomposo e longo para a tornar presença regular e aceite, junto do pequeno grupo de senhoras influentes da região.
João amou Isilda loucamente. Isilda amou João à sua maneira. Casaram daí a seis meses, em cerimónia simples. Ela de flor de laranjeira imaculada, embora não fosse virgem há muito. Ele de abas de grilo. Os Borgonha de Mello deploraram a união, mas, depauperados, não conseguiram demover o filho da ideia fixa de desposar aquela espécie de mulher bandoleira, cujo pecúlio parecia aumentar diariamente. Em 1954 nasceu Maria Armanda. Os Borgonha de Mello ficaram duplamente pacificados nessa altura, incapazes de manterem a birra perante os braços roliços da recém-nascida.
Em 1964, aos 10 anos, Maria Armanda entrava no colégio da Congregação do Coração Saudável de Maria, onde ficou até completar os 18 anos. Muito cedo, compreendera que o dinheiro lhe podia comprar a instrução e que a instrução lhe permitia sair da casa paterna, passar longos meses ausente, e não dar cavaco a ninguém.
Era uma jovem baixa e bovina, de pestanas longas, ar doce e que andava compassada e serenamente. Tendo sido criada no meio do campo e da serra, entre a rica casa de família e o chiqueiro onde foçavam os porcos e o colégio católico, Maria Armanda era uma brilhante fusão das heranças genéticas e culturais dos progenitores. Se lhe falhava o ar de femme fatal materno, tinha a graça de amazona. Se não era tão hábil no manejo das convenções sociais como o pai, era suficientemente industriosa e inteligente para ninguém tomar por má educação a sua inépcia. Podia viver no palácio ou no casebre: adaptar-se-ia de igual modo e com igual facilidade.
Em 72, chegou a Lisboa e instalou-se num pequeno apartamento na Avenida de Roma. Passou o primeiro mês na Faculdade de Letras e o resto do ano a fazer amor com um candidato a engenheiro do Técnico, esquecendo o bom casamento que tinha sido apalavrado com o alcaide de Valência de Alcântara. Juntos decidiram ir morar para Sacavém com a mesada que Maria Armanda recebia dos pais. Juntos decidiram arriscar uma vida no bombismo e derrubar o regime.
Mafalda, sabendo da vida atribulada da prima, que lera Marx e Engels, Nietzche e Habermas, Wittengstein e Benjamin, e que se dedicava no subúrbio doutrinar e iluminar a classe operária, foi visitá-la um dia. Regressou à sua casa de Cascais horrorizada: Maria Armanda habitava um rés-do-chão em São João da Talha. Era um bairro sem graça, em tons de castanho, com ruas mal acabadas e poeirentas. O piso cheirava a comida retardada e na cozinha apinhavam-se tachos por lavar. A cama, onde dormia um gato gordo, era um desalinho numa das divisões. Colados ao lavatório da casa de banho, Mafalda surpreendeu pêlos de barba naufrágos. Maria Armanda, de cabelo curto, movimentos lentos e bovinos, falava da Revolução e do mundo que colapsaria. Defendia bombas e o caos. Pior que tudo: afirmava, veemente, que não se importava nada de perder a vida de privilégio que até ali levara. Reiterava as suas raízes populares, lembrava todos os antepassados que tinham sido contrabandistas fronteiriços, e deixara de usar o nome do pai. Maria Armanda não era já uma Borgonha de Mello. Era uma Sardica. E como tal, ser operária na fábrica de confecções da Termoteb, pertencer à grande família proletária, parecia-lhe justo e adequado.
E agora, Mafalda despertava para estas memórias quando a voz de um dos moços de bordo anunciou:
- Errámos os cálculos, herr Capitão! Perdemo-nos no mar!
A voz de Schubert, grave e fria:
- Como é que é possível?!
- Capitão, as coordenadas estavam erradas. Depois da Sicília voltámos para trás e fizemos todo o Mediterrâneo de novo… Entrámos depois no Estuário do Tejo… E chegámos aqui… Talvez a nossa presença seja necessária, com a Revolução e tudo…
Revolução? Que Revolução? Mafalda estava enervada. Agora ouvia falar de uma Revolução. Não bastava não estarem na Rússia e terem desaguado em Portugal – como Portugal tinha ainda tido uma Revolução. Mais uma vez a memória da Maria Armanda, bombista, derrubando o regime e cortando cabeças, sanguinária.
- Cálculos errados? Mas como? – Schubert lembrou-se então que fora Mafalda quem se empenhara em fazer cálculos, revelando uma inusitada capacidade matemática. Agora, tudo ficava claro. Era sobejamente conhecida a inépcia lusitana para o cálculo. Talvez se lhe tivesse posto um sextante nas mãos tivessem chegado à Rússia. Ou se tivessem navegado olhando para as estrelas. O capitão sentia-se furioso e defraudado. Provavelmente, a mulher que amava tinha planeado aquilo tudo: não se enganara coisíssima nenhuma em Luanda e subira a bordo do Deutscher Bluthund, consciente de que se tratava do submarino que tinha por missão invadir a Rússia. A bordo, deixando entrever os mamilos espetados sob as camisas de seda com que gostava de aparecer na kitchenette, onde todos se juntavam à hora de jantar, Mafalda seduzira-o e à tripulação – só Adolf resistira àqueles doces encantos feminis, àquelas macias formas redondas, àquela pele fresca e rosada e tão cheirosa, àqueles cabelos sempre tão alinhados, excepto quando gritava obscenidades, presa sob o peso do corpo de Heinrich von Schubert. Recordando esses momentos, Schubert experimentou um enrubescimento e intumescimento. Ficou consternado. Se estavam encalhados ali – o grumete falava em Mouchão da Póvoa – a culpa era dela!
Porém, o soldado tinha razão: em Abril tinha havido uma Revolução naquela ponta da Europa. Era agora Dezembro. Heinrich von Schubert, que recebera a informação através do PRM, nada comentara com Mafalda. Uma mulher inquieta com a situação política do seu país era algo completamente dispensável a bordo daquele submarino. Para além do cálculo de coordenadas, Mafalda tinha apenas uma missão ali: ser uma amante perfeita e uma alegria para as tropas. Livre naquele espaço exíguo ela assim se descobrira e nisso se devia empenhar durante toda a missão. Não era por acaso que, mesmo antes do casamento oficializado, Mafalda só tinha ordem para andar de saia e sem cuequinhas pela embarcação. Heinrich solicitava-a; ela obedecia.
- O melhor seria ir a terra. Contactar com a população. A menina Mafalda…
Schubert pesou os prós e os contras. Pegou nas mãos de Mafalda, puxando-a para si: as memórias da cópula voluptuosa e terna tinham-lhe desfeito a fúria. Aproximou o seu rosto escanhoado e fresco do dela. Viu-lhe os dentes a brilhar entre os lábios secos do cieiro. Mesmo assim, continuava gira e sexy.
- Sim, Mafalda… tu podias… afinal és portuguesa… compreendes, meu amor?
Mafalda não compreendia. O que estariam aqueles dois a insinuar? Explicaram-lhe então: queriam que ela fosse a terra e voltasse a bordo com notícias dos eventos recentes no país. Falaram do derrube do regime e de famílias em fuga para o Brasil e para Espanha. Mencionaram a ameaça comunista. Ela, como portuguesa, podia obter informações fidedignas a respeito da situação. Podia procurar um amigo, um familiar, inteirar-se. Talvez Gonçalo tivesse voltado de África e tivesse participado no golpe militar. Precisavam de ter certezas, de planear uma acção, caso se considerasse necessário: e se um bando de marinheiros alemães, calcorreando as ruas de Lisboa, levantava suspeitas – ela, tão bonita, com a sua tez pálida, devido à longa permanência sob o oceano – bem podia passar também por uma revolucionária que tinha agora saído da prisão. Que tivesse andado perdida pelo mundo e regressasse a casa. Não era muito diferente do que realmente se tinha passado, pois não? Que despisse a farda que tinha vestida, porque não fazia sentido nenhum desembarcar na margem do Tejo naqueles preparos. Que usasse um dos vestidos que tinha numa das malas. Qualquer coisa simples, que não desse nas vistas.
Mafalda obedeceu. Enquanto isso, os militares preparam por isso um bote insuflável, amarelo, movido a força de remos.
Schubert ajudou-a a subir a bordo. Mafalda de Byscaia desequilibrou-se um pouco; os saltos afundaram-se na moleza da embarcação. Tinha vestido um sobretudo antracite, sério, sobre um vestido preto, de fazenda. As pérolas que herdara da mãe cintilavam no pescoço. Tinha meias de liga. E os sapatos. Os sapatos que eram a sua perdição e a de Schubert. Os sapatos que Schubert lhe pedia para não tirar quando, no camarote, a navegava, onda cavalgando outra onda, polvos e garoupas espiando-os pela escotilha. Mafalda sentiu uma lágrima a querer rebentar nos olhos. Engoliu em seco. Temeu que aquela cambada de alemães ingratos se estivessem a livrar dela, deixando-a despejada na margem, enquanto eles se faziam ao mar. Conjecturou que tudo aquilo fora uma manobra, um divertimento. Que aquele casamento celebrado a bordo do submarino era uma fantasia, uma palhaçada. Schubert não a amava. Ela que tudo tinha feito para manter a tripulação animada! Que dera força aos marinheiros colectiva e individualmente, na casa das máquinas, quando Bertinho dormia as suas sestas…
Schubert remou até à margem e saltou para a água, quando foi necessário amarrar o bote ao ancoradouro das OGMA. Tinham feito a viagem em silêncio, Mafalda sempre de beicinho.
- Ficas comigo? – perguntou com uma voz muito sumida, quando ele a enlaçou para a ajudar a sair da frágil embarcação.
Heinrich von Schubert queria responder que não, porque não podia deixar o submarino que comandava ao deus-dará; mas sentindo o calor da mulher amada, colada ali ao seu peito, não foi capaz.
- Tenho de mandar uma mensagem em código morse para o submarino. Vou mandá-lo embora. É claro que fico contigo.
Mafalda sorriu. Estava feliz. Se aquele era o seu navio de regresso, ainda bem que desembarcava. Procurou os lábios do amado e beijou-o lentamente. Era um novo princípio aquele se que lhes afigurava.
Procuraram uma estrada que os conduzisse até algum sítio - Lisboa seria o ideal. Aí, Heinrich von Schubert poderia procurar um PEM e remeter através de um sistema de pancadinhas a mensagem à tripulação, ordenando-lhes que refizessem os cálculos e tentassem chegar ao porto de mar de Cuxhaven, no Mar do Norte. Depois, telefonaria ao Almirante Hans Fernsehen, explicando o rumo dos acontecimentos.
- O velho Almirante não vai ficar contente …- pensou com os botões da sua farda.
Caminhavam lado a lado por uma espécie de vereda no meio das ervas. O capitão suspirava, vendo os sapatos de Mafalda enterrarem-se na lama. Uns sapatos tão caros, que lhe ficavam tão bonitos, a perna tão torneada, a vontade de a foder ali, no meio da erva molhada e fria, naquele descampado desconfortável, inóspito, onde só à distância se avistavam barracões imundos de fábricas.
- Ah! Não acredito!
Era Mafalda. Ele, que deambulava em sensuais e lúbricas cogitações, pensara num salto partido: mas Mafalda já não estava ao seu lado. Corria na direcção de um grupo de pessoas que hasteavam bandeiras do PCP e gritavam palavras de ordem. À frente do cortejo uma mulher baixa e com passos bovinos sorria, brandamente. Era para ela que Mafalda se dirigia apressada, ignorando a lama nos sapatos Prada, não se importando com os sapatos Prada, abraçando a outra numa efusão que Heinrich desconhecia na amada.
Os nossos heróis iam invadir a Rússia. Porquê? Não sei bem. Suspeito que haverá um qualquer acontecimento histórico por detrás, já que este me parece todo ele um romance apostado na História dos Homens, a que se acrescenta, misturando bem, mas não o suficiente para que se possam sentir, ao mordiscar esta Maçã de Inverno, a pitada de non-sense, o gosto ácido das bagas de suor que escorreram da testa da escritora e algumas baforadas de tabaco, tão necessário foi ele à imaginação.
Mafalda sentia-se em funiscas pela participação naquele extraordinário evento. Quantas mulheres podiam orgulhar-se de ter estado na primeira linha da invasão da Rússia, saindo pela mão do amado das entranhas de um submarino, que depois de ter atravessado o Pacífico, o oceano que banhava em 1974 a baía de Luanda, entrara pelo Mediterrâneo adentro, passara junto ao bico da bota italiana (fora nessa ocasião que Schubert comprara a dois mafiosos sicilianos os sapatos Prada, salto agulha, elegantíssimos, que ela tinha agora calçados), deixara para trás as ilhas gregas e chegados ao Mar Cáspio, subira Volga acima, até Tver, às portas de Moscovo, para ser testemunha e penhor daquela ocasião irrepetível?
Schubert segurava a mão de Mafalda, quando ambos emergiram do submarino e sentiram o vento fresco na tocar-lhes na cara.
Era aquilo a Rússia, portanto.
Mafalda emudeceu. Vista dali, a Rússia parecia-me muito com Alhandra. Nossa heroína se sentiu defraudada: tinha seguido Gonçalo, aka, Bernardo até África; banhara-se nas águas calientes do Pacífico; deixara a sua querida Cilinha estendida no areal da baía de Loanda, porque lhe aparecera em sonhos um velho de hirsuta cabeleira e traje de luces, que a incitara ao regresso à metrópole. Errara no navio e embarcara num submarino. Descobrira-se mulher por meio de Schubert. E agora? Agora estava encalhada no Mouchão da Póvoa, avistando Alhandra e Alverca. Vila Franca de Xira e Sacavém.
Se tinham chegado à Sicilia (os sapatos Prada não enganavam!), como era aquilo possível?
- Bertinho, isto não é a Rússia. – balbuciou. – Estamos no Tejo.
A sua vida aventurosa terminava ali. Aquele era o seu navio de regresso. A sua nau.
Não, não, não.
Mafalda pensou do alto dos seus sapatos de salto agulha que não, não, não: ela e Schubert simplesmente não podiam ter feito aquela viagem toda – amor desenfreado em alto mar, espiados por garoupas e polvos – para chegarem à banliosa de Lisboa e descobrirem a sua condição dupla de retornados e de personagens do romance As Naus.
Bertinho encarou-a estupefacto. Julgava que aquele rio em que se encontravam era o Volga. O desmazelo e desconsolo daquilo que dali se avistava SÓ podia ser a Rússia!
- Repara, querida. Isto é a Rússia. Atenta na arquitectura. Só num sítio como a Rússia poderia haver tais mamarrachos!
A querida atentou: armazéns abandalhados, casas malhadas e dispersas pelos montes e vales; a linha de comboio correndo ao longo do rio. E, sobre tudo, uma cobertura pálida, azul-cinzenta, como icing sugar.
Mafalda recordava-se de ter estado ali há algum tempo, visitando Maria Armanda, uma prima afastada.
Maria Armanda Sardica Borgonha de Mello tinha vindo do fundo do distrito de Portalegre para Lisboa, com o objectivo de estudar Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, antes de se casar com Don Benito Plátano de Almíbar, alcaide de Valência de Alcântara.
Era a única herdeira dos Sardica Borgonha de Mello, que tinham prosperado através do tráfico de café, latas de pêssegos, caramelos de pinhão, tachos e pirexes e, mais recentemente, de pílulas contraceptivas e pensos higiénicos, vendidos a preço de ouro, a um grupo restrito da alta sociedade do distrito de Portalegre. De facto, tinha sido a sua mãe, Isilda Sardica a iniciar o negócio do contrabando.
No início dos anos 50, Isilda era uma estampa. Oxigenava o cabelo e pintava os lábios de vermelho. Tinha o ar dramático de espanhola salerosa e de mulher independente. Por uma tarde de tourada, em Monforte, João Borgonha de Mello fazia a lide na garupa do seu cavalo Ruço – e topou-a no meio da multidão. Isilda tinha uma flor rubra no cabelo descolorido e trajava um vestido obscenamente escarlate. João viu-a a preto e branco, como num filme: achou que era a Marlene Dietrich. Só por isso espetou feroz um ferro no touro, e tirou o chapéu de três bicos da cabeça, cumprimentando a beldade, enquanto fazia o Ruço voltear a trote pela arena.
Isilda, que não era nada parva e bem conhecia o seu poder junto dos homens, no final do espectáculo encaminhou-se até ao Retiro do Forcado, onde todos comemoravam. Que impressão causou junto daqueles homens brutos, que entretinham o seu tédio em faenas! Interessava-lhe apenas um – o toureiro que a cumprimentara e que, não sendo bonito, também não era feio. Que não tendo dinheiro, nem posses, tinha um nome suficientemente sonante, pomposo e longo para a tornar presença regular e aceite, junto do pequeno grupo de senhoras influentes da região.
João amou Isilda loucamente. Isilda amou João à sua maneira. Casaram daí a seis meses, em cerimónia simples. Ela de flor de laranjeira imaculada, embora não fosse virgem há muito. Ele de abas de grilo. Os Borgonha de Mello deploraram a união, mas, depauperados, não conseguiram demover o filho da ideia fixa de desposar aquela espécie de mulher bandoleira, cujo pecúlio parecia aumentar diariamente. Em 1954 nasceu Maria Armanda. Os Borgonha de Mello ficaram duplamente pacificados nessa altura, incapazes de manterem a birra perante os braços roliços da recém-nascida.
Em 1964, aos 10 anos, Maria Armanda entrava no colégio da Congregação do Coração Saudável de Maria, onde ficou até completar os 18 anos. Muito cedo, compreendera que o dinheiro lhe podia comprar a instrução e que a instrução lhe permitia sair da casa paterna, passar longos meses ausente, e não dar cavaco a ninguém.
Era uma jovem baixa e bovina, de pestanas longas, ar doce e que andava compassada e serenamente. Tendo sido criada no meio do campo e da serra, entre a rica casa de família e o chiqueiro onde foçavam os porcos e o colégio católico, Maria Armanda era uma brilhante fusão das heranças genéticas e culturais dos progenitores. Se lhe falhava o ar de femme fatal materno, tinha a graça de amazona. Se não era tão hábil no manejo das convenções sociais como o pai, era suficientemente industriosa e inteligente para ninguém tomar por má educação a sua inépcia. Podia viver no palácio ou no casebre: adaptar-se-ia de igual modo e com igual facilidade.
Em 72, chegou a Lisboa e instalou-se num pequeno apartamento na Avenida de Roma. Passou o primeiro mês na Faculdade de Letras e o resto do ano a fazer amor com um candidato a engenheiro do Técnico, esquecendo o bom casamento que tinha sido apalavrado com o alcaide de Valência de Alcântara. Juntos decidiram ir morar para Sacavém com a mesada que Maria Armanda recebia dos pais. Juntos decidiram arriscar uma vida no bombismo e derrubar o regime.
Mafalda, sabendo da vida atribulada da prima, que lera Marx e Engels, Nietzche e Habermas, Wittengstein e Benjamin, e que se dedicava no subúrbio doutrinar e iluminar a classe operária, foi visitá-la um dia. Regressou à sua casa de Cascais horrorizada: Maria Armanda habitava um rés-do-chão em São João da Talha. Era um bairro sem graça, em tons de castanho, com ruas mal acabadas e poeirentas. O piso cheirava a comida retardada e na cozinha apinhavam-se tachos por lavar. A cama, onde dormia um gato gordo, era um desalinho numa das divisões. Colados ao lavatório da casa de banho, Mafalda surpreendeu pêlos de barba naufrágos. Maria Armanda, de cabelo curto, movimentos lentos e bovinos, falava da Revolução e do mundo que colapsaria. Defendia bombas e o caos. Pior que tudo: afirmava, veemente, que não se importava nada de perder a vida de privilégio que até ali levara. Reiterava as suas raízes populares, lembrava todos os antepassados que tinham sido contrabandistas fronteiriços, e deixara de usar o nome do pai. Maria Armanda não era já uma Borgonha de Mello. Era uma Sardica. E como tal, ser operária na fábrica de confecções da Termoteb, pertencer à grande família proletária, parecia-lhe justo e adequado.
E agora, Mafalda despertava para estas memórias quando a voz de um dos moços de bordo anunciou:
- Errámos os cálculos, herr Capitão! Perdemo-nos no mar!
A voz de Schubert, grave e fria:
- Como é que é possível?!
- Capitão, as coordenadas estavam erradas. Depois da Sicília voltámos para trás e fizemos todo o Mediterrâneo de novo… Entrámos depois no Estuário do Tejo… E chegámos aqui… Talvez a nossa presença seja necessária, com a Revolução e tudo…
Revolução? Que Revolução? Mafalda estava enervada. Agora ouvia falar de uma Revolução. Não bastava não estarem na Rússia e terem desaguado em Portugal – como Portugal tinha ainda tido uma Revolução. Mais uma vez a memória da Maria Armanda, bombista, derrubando o regime e cortando cabeças, sanguinária.
- Cálculos errados? Mas como? – Schubert lembrou-se então que fora Mafalda quem se empenhara em fazer cálculos, revelando uma inusitada capacidade matemática. Agora, tudo ficava claro. Era sobejamente conhecida a inépcia lusitana para o cálculo. Talvez se lhe tivesse posto um sextante nas mãos tivessem chegado à Rússia. Ou se tivessem navegado olhando para as estrelas. O capitão sentia-se furioso e defraudado. Provavelmente, a mulher que amava tinha planeado aquilo tudo: não se enganara coisíssima nenhuma em Luanda e subira a bordo do Deutscher Bluthund, consciente de que se tratava do submarino que tinha por missão invadir a Rússia. A bordo, deixando entrever os mamilos espetados sob as camisas de seda com que gostava de aparecer na kitchenette, onde todos se juntavam à hora de jantar, Mafalda seduzira-o e à tripulação – só Adolf resistira àqueles doces encantos feminis, àquelas macias formas redondas, àquela pele fresca e rosada e tão cheirosa, àqueles cabelos sempre tão alinhados, excepto quando gritava obscenidades, presa sob o peso do corpo de Heinrich von Schubert. Recordando esses momentos, Schubert experimentou um enrubescimento e intumescimento. Ficou consternado. Se estavam encalhados ali – o grumete falava em Mouchão da Póvoa – a culpa era dela!
Porém, o soldado tinha razão: em Abril tinha havido uma Revolução naquela ponta da Europa. Era agora Dezembro. Heinrich von Schubert, que recebera a informação através do PRM, nada comentara com Mafalda. Uma mulher inquieta com a situação política do seu país era algo completamente dispensável a bordo daquele submarino. Para além do cálculo de coordenadas, Mafalda tinha apenas uma missão ali: ser uma amante perfeita e uma alegria para as tropas. Livre naquele espaço exíguo ela assim se descobrira e nisso se devia empenhar durante toda a missão. Não era por acaso que, mesmo antes do casamento oficializado, Mafalda só tinha ordem para andar de saia e sem cuequinhas pela embarcação. Heinrich solicitava-a; ela obedecia.
- O melhor seria ir a terra. Contactar com a população. A menina Mafalda…
Schubert pesou os prós e os contras. Pegou nas mãos de Mafalda, puxando-a para si: as memórias da cópula voluptuosa e terna tinham-lhe desfeito a fúria. Aproximou o seu rosto escanhoado e fresco do dela. Viu-lhe os dentes a brilhar entre os lábios secos do cieiro. Mesmo assim, continuava gira e sexy.
- Sim, Mafalda… tu podias… afinal és portuguesa… compreendes, meu amor?
Mafalda não compreendia. O que estariam aqueles dois a insinuar? Explicaram-lhe então: queriam que ela fosse a terra e voltasse a bordo com notícias dos eventos recentes no país. Falaram do derrube do regime e de famílias em fuga para o Brasil e para Espanha. Mencionaram a ameaça comunista. Ela, como portuguesa, podia obter informações fidedignas a respeito da situação. Podia procurar um amigo, um familiar, inteirar-se. Talvez Gonçalo tivesse voltado de África e tivesse participado no golpe militar. Precisavam de ter certezas, de planear uma acção, caso se considerasse necessário: e se um bando de marinheiros alemães, calcorreando as ruas de Lisboa, levantava suspeitas – ela, tão bonita, com a sua tez pálida, devido à longa permanência sob o oceano – bem podia passar também por uma revolucionária que tinha agora saído da prisão. Que tivesse andado perdida pelo mundo e regressasse a casa. Não era muito diferente do que realmente se tinha passado, pois não? Que despisse a farda que tinha vestida, porque não fazia sentido nenhum desembarcar na margem do Tejo naqueles preparos. Que usasse um dos vestidos que tinha numa das malas. Qualquer coisa simples, que não desse nas vistas.
Mafalda obedeceu. Enquanto isso, os militares preparam por isso um bote insuflável, amarelo, movido a força de remos.
Schubert ajudou-a a subir a bordo. Mafalda de Byscaia desequilibrou-se um pouco; os saltos afundaram-se na moleza da embarcação. Tinha vestido um sobretudo antracite, sério, sobre um vestido preto, de fazenda. As pérolas que herdara da mãe cintilavam no pescoço. Tinha meias de liga. E os sapatos. Os sapatos que eram a sua perdição e a de Schubert. Os sapatos que Schubert lhe pedia para não tirar quando, no camarote, a navegava, onda cavalgando outra onda, polvos e garoupas espiando-os pela escotilha. Mafalda sentiu uma lágrima a querer rebentar nos olhos. Engoliu em seco. Temeu que aquela cambada de alemães ingratos se estivessem a livrar dela, deixando-a despejada na margem, enquanto eles se faziam ao mar. Conjecturou que tudo aquilo fora uma manobra, um divertimento. Que aquele casamento celebrado a bordo do submarino era uma fantasia, uma palhaçada. Schubert não a amava. Ela que tudo tinha feito para manter a tripulação animada! Que dera força aos marinheiros colectiva e individualmente, na casa das máquinas, quando Bertinho dormia as suas sestas…
Schubert remou até à margem e saltou para a água, quando foi necessário amarrar o bote ao ancoradouro das OGMA. Tinham feito a viagem em silêncio, Mafalda sempre de beicinho.
- Ficas comigo? – perguntou com uma voz muito sumida, quando ele a enlaçou para a ajudar a sair da frágil embarcação.
Heinrich von Schubert queria responder que não, porque não podia deixar o submarino que comandava ao deus-dará; mas sentindo o calor da mulher amada, colada ali ao seu peito, não foi capaz.
- Tenho de mandar uma mensagem em código morse para o submarino. Vou mandá-lo embora. É claro que fico contigo.
Mafalda sorriu. Estava feliz. Se aquele era o seu navio de regresso, ainda bem que desembarcava. Procurou os lábios do amado e beijou-o lentamente. Era um novo princípio aquele se que lhes afigurava.
Procuraram uma estrada que os conduzisse até algum sítio - Lisboa seria o ideal. Aí, Heinrich von Schubert poderia procurar um PEM e remeter através de um sistema de pancadinhas a mensagem à tripulação, ordenando-lhes que refizessem os cálculos e tentassem chegar ao porto de mar de Cuxhaven, no Mar do Norte. Depois, telefonaria ao Almirante Hans Fernsehen, explicando o rumo dos acontecimentos.
- O velho Almirante não vai ficar contente …- pensou com os botões da sua farda.
Caminhavam lado a lado por uma espécie de vereda no meio das ervas. O capitão suspirava, vendo os sapatos de Mafalda enterrarem-se na lama. Uns sapatos tão caros, que lhe ficavam tão bonitos, a perna tão torneada, a vontade de a foder ali, no meio da erva molhada e fria, naquele descampado desconfortável, inóspito, onde só à distância se avistavam barracões imundos de fábricas.
- Ah! Não acredito!
Era Mafalda. Ele, que deambulava em sensuais e lúbricas cogitações, pensara num salto partido: mas Mafalda já não estava ao seu lado. Corria na direcção de um grupo de pessoas que hasteavam bandeiras do PCP e gritavam palavras de ordem. À frente do cortejo uma mulher baixa e com passos bovinos sorria, brandamente. Era para ela que Mafalda se dirigia apressada, ignorando a lama nos sapatos Prada, não se importando com os sapatos Prada, abraçando a outra numa efusão que Heinrich desconhecia na amada.
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