Porquê a física quântica na Luanda do Índico? Gonçalo pensava na Mãe com todas as forças que Deus e o Acaso lhe haviam dado, sob a inclemência do Cruzeiro do Sul. Nunca ocorrera a Gonçalo que meia dúzia de luzeiros celestes pudessem castigar assim a sua cútis atreita a melanomas vários. Porquê pensar na Mãe depois de Freud ter demonstrado cientificamente a natureza pecaminosa dos actos de Édipo? Ciência: quântica. Édipo: Cruzeiro do Sul. Mãe: Mafalda. O robusto herói da nossa História.... Pois não viria Gonçalo a ser um herói da nossa História? O sólido protagonista desta epopeia geográfica e luxuriosa, dizia eu, não resistiu à evidência mística da inicial comum em «Mãe» e «Mafalda». Refutado assim o princípio da incerteza que lhe animara a mais tenra infância e a adolescência agora finda, Gonçalo mal teve tempo de se limpar do jorro de natureza que os pensamentos solitários lhe haviam inspirado. Onde poderá Gonçalo descobrir um padre perante quem se confesse? Quem lhe dera uma missão na fiel Timor! O alferes entretanto promovido a capitão, coagido pela ausência de um homem de Deus, correu para o rádio-satélite a ouvir uma mãe-de-santo de Salvador da Bahia que o Pai lhe recomendara para as aflições.
A Pátria nunca dominara o espírito ávido do pescador de trutas em toureio a cavalo. Agora, todavia, a alma de Gonçalo, envolvida no pesadelo sifilítico que sucedera à confissão do desejo materno, sentia a universalidade da língua de Garcia de Resende. Gonçalo percebeu que o comércio triangular e cristão não era triangular, mas apenas cristão. Da Bahia a Díli, dava seguramente para desenhar o pé da Cruz. De Lourenço Marques a Caminha, faziam-se os braços sagrados, com espaço suficiente para pendurar uns vasos com flores do Alentejo primaveril. In hoc signo vinces, como lhe dissera a professora primária cujos túrgidos seios Gonçalo não conseguia esquecer. Assim convertido ao Desígnio patriótico do Quinto Império, o filho dos Cepúlvedas abandonou as armas em favor do breviário, que decidiu difundir por entre os cafres. O hábito não se dá bem com o calor, é certo, mas mais vale uma insolação incerta do que a certeza de os turras haverem de apanhá-lo. Haviam de apanhá-lo? Muito provavelmente.
Almiro e Beatriz tinham partido há pouco de mão dada e olhares enternecidos quando Mafalda recebeu as novas africanas do múnus evangelizador que Gonçalo abraçara. Não queira a pudica leitora saber das palavras cruas que Mafalda soltou perante a informação que a Caras não desdenharia:
_Ó Almiro! Ó Beatriz! Voltem cá já, que eu desfaleço de rancor e ódio! Ai, o malandro! Ai do malandro quando lhe puser as mãos em cima!
_Que foi, que foi, rica filha?! — disse a generosidade quase materna de Beatriz.
_O que é que foi, florzinha de Cascais por desflorar?! — inquiriu Almiro, regressando à mansão .
_Atão vocês não querem ver que este filho de uma cadela renunciou eternamente ao amor de Eros que me dedicara?!
Lembrando-se da sua condição de prima donna nesta opereta dos Borgonhas, Mafalda reformulou:
_Oh, que não sei de nojo como o conte! O Destino, o Fado e o Desígnio Inteligente reuniram-se para maior desgraça desta descendente de Teodorico dos Suevos!
Mais satisfeita com o que agora lhe saía da boca, Matilde continuou:
_Bem sei, Almiro, que não conheces aquele por quem tremem o meu coração e os lírios roxos da minha vergonha! Bem sei, Beatriz, que ignoras o amor que dedico a quem foi o mais esplêndido frequentador dos lupanares de Cascais! Bem sei, janela de cristal da Boémia, que nunca os raios de luz reflectidos por aquele semblante lúbrico atravessaram a substância translúcida que te constitui....
Matilde parou um instante, a calcular a média de palavras esdrúxulas por linha, procurando com afã algum pronome enclítico que pudesse ter gerado o horror de uma bisesdrúxula. Só sossegou com a certeza de ter respeitado os índices tónicos do livro de estilo do Diário da Manhã.
_Vem, pelo que te é mais caro, aos meus braços, ao meu seio e à minha púbis. Vem, Almiro, desagravar-me desta dor que corrói a alma! Espera um nadinha, Beatriz, que já to empresto! Oh!...
À beira de desmaiar, Matilde ainda pôde sentir o tremor e espasmo que Almiro lhe dera com afinco no entretanto. No entretanto, e no canapé. Beatriz, impaciente, colaborara com o herdeiro dos Thurn und Taxis — ou, pelo menos, do turno dos táxis — no tributo ao deleite de Matilde.
_Parto agora de cargueiro para o Ultramar! Impedirei que se perca o corpo daquele que amo numa alma oferecida em hecatombe aos pés dos hotentotes. Deixem-me, deixem-me, que este chão não reterá a força do meu desejo!
Novo instante de paragem. Será lícito, numa frase só, dizer hecatombe e hotentotes, logo depois de o narrador ter escrito do deleite de Matilde? A cacofonia, no entanto, também não a demoveu. Conseguirá Matilde inverter o curso da História? Muito provavelmente.
O Atlântico flui por entre as suas margens acolhedoras e lascivas desde há milénios. Se mil anos perfazem um milénio, o que perfará um milhão? Matilde sonhava pela amurada com a fluidez e a fluência daquelas águas. Tanto fluido despertou-lhe as humidades da juventude, alçou-lhe o olhar para um grumete de olhos pestanudos, corpo franzino e sorriso tímido que esfregava o convés. Matilde não negou o sinal que aquele oposto de Bernardo e Almiro ali representava. Bernardo, o ex-alferes promovido a capitão que naquele momento tomava ordens em Lourenço Marques, era a tese a que o grumete fazia a antítese. A viagem de Matilde almejava a uma síntese entre o Amor, a Pátria, a Fé e a Família. O Futebol de Eusébio nunca roubara Matilde aos pontos cardeais da moral dos Borgonhas. E a vergonha não lhe toldava o siso:
_Como hei eu de fazer o grumete sem ser descoberta? — cogitou.
O corpo franzino escondia uma força rija de dimensões ciclópicas. O tronco da araucária secular dos jardins dos Borgonhas encontrava ali um irmão direito e inquebrável. O balanço insistente das águas equatoriais poupava os amantes simbólicos da negação hegeliana ao cansaço pélvico de kama sutras antigos. Matilde atingiu vezes sem conta o Céu terreno das contracções vulvares. Perdeu-se a Estrela do Norte no horizonte, elevou-se o Cruzeiro que abrasava Bernardo, tudo sem que Efigénia — a transsexual empregada como grumete no navio rumo ao Sul — retirasse aquele opíparo mastro das regueifas feminis de Matilde.
Por falar em opíparo, Matilde sentiu fome. Experienciou-a como saudade das sandes mistas de orelheira e queijo de Azeitão que José, o mordomo da Família, sempre lhe preparara com dedicação. O velho José, que se recordava da pneumónica e temia a tuberculose e as lombrigas como quem teme a Danação e o Apocalipse, sempre lhe havia aconselhado a gordura em lugar da formosura:
_Coma bem, Menina! Coma carninha, peixinho e pãozinho, que lhe darão saudinha! Largue essas revistas malignas que hão-de levar gerações de anorécticas ao assoberbamento do SNS universal e gratuito! Coma legumes da horta, ovos da galinha, queijo da vaquinha!
Trinta e nove palavras de um mordomo glutão possuído pela praga do diminutivo em -inho. Que história é esta?! Que inclinação comunista pode dar tanta voz aos subalternos? Matilde continuava com fome. Se houvesse trutas no mar, saciar-se-ia à linha, recordando enlevos fluviais na companhia de Bernardo. Mas a improbabilidade da truta no escuro Oceano só acirrava o anseio de alimento que torturava a principal actriz do nosso enredo. Matilde comeu uma maçã de Inverno e umas bolachinhas de água e sal antes de regressar ao leito, desta vez para um sono restaurador. No dia seguinte, o Ponta de Sagres acostaria em Lourenço Marques. Conseguiria Matilde dobrar o Cabo das Tormentas de Afrodite, tolhendo o percurso do Espírito de Bernardo?... Hã? Muito provavelmente!
A Pátria nunca dominara o espírito ávido do pescador de trutas em toureio a cavalo. Agora, todavia, a alma de Gonçalo, envolvida no pesadelo sifilítico que sucedera à confissão do desejo materno, sentia a universalidade da língua de Garcia de Resende. Gonçalo percebeu que o comércio triangular e cristão não era triangular, mas apenas cristão. Da Bahia a Díli, dava seguramente para desenhar o pé da Cruz. De Lourenço Marques a Caminha, faziam-se os braços sagrados, com espaço suficiente para pendurar uns vasos com flores do Alentejo primaveril. In hoc signo vinces, como lhe dissera a professora primária cujos túrgidos seios Gonçalo não conseguia esquecer. Assim convertido ao Desígnio patriótico do Quinto Império, o filho dos Cepúlvedas abandonou as armas em favor do breviário, que decidiu difundir por entre os cafres. O hábito não se dá bem com o calor, é certo, mas mais vale uma insolação incerta do que a certeza de os turras haverem de apanhá-lo. Haviam de apanhá-lo? Muito provavelmente.
Almiro e Beatriz tinham partido há pouco de mão dada e olhares enternecidos quando Mafalda recebeu as novas africanas do múnus evangelizador que Gonçalo abraçara. Não queira a pudica leitora saber das palavras cruas que Mafalda soltou perante a informação que a Caras não desdenharia:
_Ó Almiro! Ó Beatriz! Voltem cá já, que eu desfaleço de rancor e ódio! Ai, o malandro! Ai do malandro quando lhe puser as mãos em cima!
_Que foi, que foi, rica filha?! — disse a generosidade quase materna de Beatriz.
_O que é que foi, florzinha de Cascais por desflorar?! — inquiriu Almiro, regressando à mansão .
_Atão vocês não querem ver que este filho de uma cadela renunciou eternamente ao amor de Eros que me dedicara?!
Lembrando-se da sua condição de prima donna nesta opereta dos Borgonhas, Mafalda reformulou:
_Oh, que não sei de nojo como o conte! O Destino, o Fado e o Desígnio Inteligente reuniram-se para maior desgraça desta descendente de Teodorico dos Suevos!
Mais satisfeita com o que agora lhe saía da boca, Matilde continuou:
_Bem sei, Almiro, que não conheces aquele por quem tremem o meu coração e os lírios roxos da minha vergonha! Bem sei, Beatriz, que ignoras o amor que dedico a quem foi o mais esplêndido frequentador dos lupanares de Cascais! Bem sei, janela de cristal da Boémia, que nunca os raios de luz reflectidos por aquele semblante lúbrico atravessaram a substância translúcida que te constitui....
Matilde parou um instante, a calcular a média de palavras esdrúxulas por linha, procurando com afã algum pronome enclítico que pudesse ter gerado o horror de uma bisesdrúxula. Só sossegou com a certeza de ter respeitado os índices tónicos do livro de estilo do Diário da Manhã.
_Vem, pelo que te é mais caro, aos meus braços, ao meu seio e à minha púbis. Vem, Almiro, desagravar-me desta dor que corrói a alma! Espera um nadinha, Beatriz, que já to empresto! Oh!...
À beira de desmaiar, Matilde ainda pôde sentir o tremor e espasmo que Almiro lhe dera com afinco no entretanto. No entretanto, e no canapé. Beatriz, impaciente, colaborara com o herdeiro dos Thurn und Taxis — ou, pelo menos, do turno dos táxis — no tributo ao deleite de Matilde.
_Parto agora de cargueiro para o Ultramar! Impedirei que se perca o corpo daquele que amo numa alma oferecida em hecatombe aos pés dos hotentotes. Deixem-me, deixem-me, que este chão não reterá a força do meu desejo!
Novo instante de paragem. Será lícito, numa frase só, dizer hecatombe e hotentotes, logo depois de o narrador ter escrito do deleite de Matilde? A cacofonia, no entanto, também não a demoveu. Conseguirá Matilde inverter o curso da História? Muito provavelmente.
O Atlântico flui por entre as suas margens acolhedoras e lascivas desde há milénios. Se mil anos perfazem um milénio, o que perfará um milhão? Matilde sonhava pela amurada com a fluidez e a fluência daquelas águas. Tanto fluido despertou-lhe as humidades da juventude, alçou-lhe o olhar para um grumete de olhos pestanudos, corpo franzino e sorriso tímido que esfregava o convés. Matilde não negou o sinal que aquele oposto de Bernardo e Almiro ali representava. Bernardo, o ex-alferes promovido a capitão que naquele momento tomava ordens em Lourenço Marques, era a tese a que o grumete fazia a antítese. A viagem de Matilde almejava a uma síntese entre o Amor, a Pátria, a Fé e a Família. O Futebol de Eusébio nunca roubara Matilde aos pontos cardeais da moral dos Borgonhas. E a vergonha não lhe toldava o siso:
_Como hei eu de fazer o grumete sem ser descoberta? — cogitou.
O corpo franzino escondia uma força rija de dimensões ciclópicas. O tronco da araucária secular dos jardins dos Borgonhas encontrava ali um irmão direito e inquebrável. O balanço insistente das águas equatoriais poupava os amantes simbólicos da negação hegeliana ao cansaço pélvico de kama sutras antigos. Matilde atingiu vezes sem conta o Céu terreno das contracções vulvares. Perdeu-se a Estrela do Norte no horizonte, elevou-se o Cruzeiro que abrasava Bernardo, tudo sem que Efigénia — a transsexual empregada como grumete no navio rumo ao Sul — retirasse aquele opíparo mastro das regueifas feminis de Matilde.
Por falar em opíparo, Matilde sentiu fome. Experienciou-a como saudade das sandes mistas de orelheira e queijo de Azeitão que José, o mordomo da Família, sempre lhe preparara com dedicação. O velho José, que se recordava da pneumónica e temia a tuberculose e as lombrigas como quem teme a Danação e o Apocalipse, sempre lhe havia aconselhado a gordura em lugar da formosura:
_Coma bem, Menina! Coma carninha, peixinho e pãozinho, que lhe darão saudinha! Largue essas revistas malignas que hão-de levar gerações de anorécticas ao assoberbamento do SNS universal e gratuito! Coma legumes da horta, ovos da galinha, queijo da vaquinha!
Trinta e nove palavras de um mordomo glutão possuído pela praga do diminutivo em -inho. Que história é esta?! Que inclinação comunista pode dar tanta voz aos subalternos? Matilde continuava com fome. Se houvesse trutas no mar, saciar-se-ia à linha, recordando enlevos fluviais na companhia de Bernardo. Mas a improbabilidade da truta no escuro Oceano só acirrava o anseio de alimento que torturava a principal actriz do nosso enredo. Matilde comeu uma maçã de Inverno e umas bolachinhas de água e sal antes de regressar ao leito, desta vez para um sono restaurador. No dia seguinte, o Ponta de Sagres acostaria em Lourenço Marques. Conseguiria Matilde dobrar o Cabo das Tormentas de Afrodite, tolhendo o percurso do Espírito de Bernardo?... Hã? Muito provavelmente!
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