sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

XII

«Ensinas-me?»
Isto é a voz interior da personagem gonçaliana a cogitar. Valerá a pena perseguir os seus intentos, interroga-se o quixotesco Gonçalo, ou mais vale mudar de vida e pedir ao seu fiel escudeiro que o inicie na arte de bem bordar? [Se calhar, é de escolher o tipo Bookman Old Style, tamanho 11? não, mais vale o 12, que os revisores também merecem que se pense neles.] Ao mesmo tempo, numa clara divisão dos processos mentais, pensa Gonçalo que a coisa vai dar bronca, e citamos. Muito provavelmente (será preciso acrescentar?). Enquanto se somam cogitações mil, o olhar do leitor corre escada abaixo, em perseguição da imponente figura de MachuN’gu, direito a esse antro da perdição que dá pelo sonante nome de Gabiru, poiso de virgens despidas de preconceitos e machos de trazer por casa.
Desenganem-se. Quem espera sequência lógica neste folhetinesco relato das aventuras e desventuras de um punhado de personagens maiores do que a vida, pode muito bem virar a página e ligar antes a televisão, pois não terá outro remédio senão ficar em suspenso. Com sorte, apanha o Nemésio ― meia hora de cultura nos idos de 1970, em horário nobre, se bem se lembram ― ou algum episódio da Quinta Dimensão do Rod Serling de boa memória.
Que é como quem diz, as regras do jogo, dita-as o escriba de serviço. Que pode muito bem ser uma ela, atenção analistas literários com faro para descobrir no corpo o texto o sexo da escrita. Os olhos, dizíamos, seguem MachuN’gu, que avança a bom ritmo, recorrendo à experiência adquirida no tempo da guerra colonial, quando percorria os perigosos caminhos do mato, relanceando à esquerda e à direita, na eterna expectativa de ver surgir diante de si inimigo da pátria. Perdida entretanto não só a alma de combatente como o nome de guerra, o bom gigante passou a ser conhecido por Mané, trocando a G3 pela agulha, à medida que lhe fugia a mão para os lavores ditos femininos.
Outro que parece ter perdido o comboio da história é Gonçalo, a quem a bela e fogosa Mafalda costumava chamar carinhosamente «Gonças», mui ao jeito pedante de uma certa classe com pose aristocrática que se entretém a retalhar todos os nomes de família até só sobrarem nicos. Gonçalo para os leitores, por favor, deixemos o tom delicodoce para as telenovelas que ameaçam tomar de assalto a televisão que temos (TQT, pois claro). Gonçalo, escrevíamos nós, ficou posto em seu sossego, entregue às equações e fórmulas e mapas desenhados em papel manteiga. Convenhamos que já chega de alfa e beta, símbolos do infinito e sinalefas em forma de tridente que obrigam ao gesto obrigatório de «inserir símbolo», quando não ao uso dos dicionários; já agora, o de sinónimos também. A física quântica é muito bonita, mas acaso haverá quem não prefira o apuro da linguagem romanesca propriamente dita?
De Gonçalo sabe-se tudo isso não só porque foi escrito mas pelo facto de existir uma câmara, directamente assestada sobre a personagem com laivos de herói. Ser ou não ser Cepúlveda, eis a questão. Provavelmente são imagens susceptíveis de produzir bons planos de corte, na sala de montagem, caso o folhetim seja traduzido para a linguagem do ecrã. Sim, nobres herdeiros de Kleist e Camilo, vá lá saber-se as malhas que o império televisivo poderá vir ainda a tecer. O mundo deu uma volta e os portugueses, no seu pequeno mundo, deram por si encaixados numa Europa fragmentada, rodeados por telenovelas brasileiras e séries americanas. Estamos a falar do reino televisivo, não se amofinem.
Por estas linhas, de resto, já o capítulo XII se adivinha um filme de Woody Allen, colheita tardia. Que Godard nos perdoe, ele que vem a calhar como referência cinéfila. Vendo bem, no seu Alphaville também o cineasta francês que advogou a morte do cinema suspendeu a linearidade e trocou as voltas ao espectador.
Arredada do olhar da câmara, a menina Mafalda está viva da Silva (do apelido dela rezam, entre outros, os nomes Borgonha de Biscaya, mas que querem, é tão fácil cair na citação) e, como tal, recomenda-se aos leitores. Ora aqui está um desafio a quem pegar neste texto entrelaçado e remendado por uma dúzia de espíritos com queda para a efabulação.
Costuras à vista desarmada, chega de correntes do pensamento e de encadeamentos subjectivos. Traduzindo por miúdos, urge regressar ao tom chão da prosa realista, recheado de imagens de sexo puro e duro nos interiores sufocantes do tal submarino alemão que foi encalhar na costa portuguesa, em Alhandra-sur-Mère, quando tinha por destino uma Rússia a pedir salvação.
Isto na óptica das almas colonizadoras. Sim, porque é preciso não esquecer nem a Maria Armanda, Sardica dos quatro costados, nem o seu José Platão. Aos olhos dos revolucionários a que temos direito neste folhetim, semelhante frase reaccionária só servirá para atiçar ainda mais o seu fervor ideológico. Considerem-se avisados. Entra Beethoven e sai Schubert, que já cá faltava a incontornável referência melómana.
Bom, se o sexo não pegar, pode ser que os primordiais amantes voltem a cair nos braços um do outro. Será Gonçalo a raptar a sua Mafalda, nas profundezas da noite de Lisboa? A pecaminosa cena poderia muito bem acontecer em pleno Verão, quem sabe se antevendo um futuro prenhe de uma infinidade de histórias possíveis.
A propósito, será aí que entra a maçã de Inverno a que o título se refere? Se a resposta for um redondo não, que é feito dela, da maçãzinha de sabor amargo-doce? Que lugar ocupa neste país que, por via de uma história de cordel, regressou ao Verão Quente de 1975? Era aí que queriam chegar?
Talvez o próximo a pegar no texto acerte com o final e acabe de vez com as interrogações. Pode ser que sim, mas, já que tocamos na tecla, reparem: nem um ponto de exclamação, daqueles que irritam supinamente os críticos, para amostra. Apenas uma última pergunta, feita por Mafalda. No calor da noite, em pleno saguão à Rua das Pretas, encontram-se os três, como que predestinados a tão histórico desenlace. Pelos vistos, Mané não só logrou calar o ribombo surdo que se fazia ouvir no Gabiru como entrou «la femme» por que Gonçalo ainda suspirava. Mafalda, escrevíamos nós, pega num pano bordado e pergunta ao negro, num fio de voz:
«Ensinas-me?»

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