domingo, 4 de janeiro de 2009

X

À mesma hora que D. Thomaz de Byscaia visitava os sonhos de Mafalda, através dessa projecção onírica dum passado que não é senão uma má desculpa para um presente atávico, e esta cumpria na sua pessoa o destino de todo um povo que teima em adiar-se, Gonçalo rumava à Terra Santa. E foi então, ao passar as neves perenes do Monte Sinai, que tudo se tornou claro, por assim dizer, no seu espírito, endurecido pelo convívio aturado com MachuN’gu. Naquele século de desatinos, o Quinto Império não se bastava na porfia de tornar Lisboa, com o Tejo e tudo, a capital universal. Não! Nada menos se impunha que fazer de África um imenso Portugal. A palavra chave do seu ideário político não era retirar de África, mas retirar da Europa. Literalmente e de vez.
Mal sabia Gonçalo que o vezo autonomista dos tempos pouco se coadunava já com semelhantes lérias. O fardo do homem branco que as cabeças bem pensantes mostravam querer alijar a todo o transe, parecia-lhe a ele carga indeclinável da história que só a arte de ser português saberia tornar suave, a brancos e pretos por igual. Pouco lhe importava que as suas ideias fossem desfazadas da realidade: do seu gosto juvenil pela física quântica, febrilmente partilhado com Mafalda, ficara a certeza do carácter caótico do cosmos. A Gonçalo e MachuN’gu, agora transmudados no Quixote e o seu inefável Sancho da nossa Baviera, só faltava encontrar uma linguagem adequada a exprimir o seu grande desígnio. Encontraram-na na faixa de Gaza, em plenos campos de treino da PIDE (Palestina Independente Dos Ebreus), no convívio com esses fíeis seguidores de Robespierre que, de modo apenas aparentemente paradoxal, são os fundamentalistas islâmicos. Daí passou Gonçalo às guerrilhas maoístas. Daí, finalmente, aos cursos de verão de filosofia política em faculdades de literatura inglesa de universidades americanas de terceira. Estava concluída a formação política de Gonçalo. E era coisa espantosa de se ver a dupla que formava com MachuN’gu, o colosso africano a que nenhuma população de campus universitário que se prezasse dos anos setenta se poderia mostrar indiferente. Desconhecedores do passado de ambos, todos se admiravam de ver opressor e oprimido empenhados por igual num projecto político, mas o caso não soava estranho aos horizontes pos-estrututralistas e desconstrucionistas da altura. Muito pelo contrário…
O gosto indelével da maçã de Inverno permanecia, porém, no palato de Gonçalo, mesmo para além das investidas furiosas de MachuN’gu, que o tempo e a boa doutrina haviam sabido domar a contento de ambos. Era esta mais uma razão para voltar a Portugal.
E foi assim que em pleno período revolucionário, Gonçalo e o seu fiel seguidor aportaram a terras lusitanas. À uma trazia-os o fito de fazer despertar as consciências, por todos os meios subversivos ao seu alcance, para o grande desígnio de cafrealizar definitivamente o País; à outra movia Gonçalo um secreto e inconfessado desejo de reencontrar a Mafalda da sua mocidade. A chegada fez-se por terra, naquele mesmo comboio que nos trouxe o Lénine português.
Ao desembarcar em Santa Apolónia pareceu logo a Gonçalo que o ambiente eufórico que então se vivia constituía a seara ideal onde atear o seu incêndio político. Faltavam-lhe, porém, acendalhas eficazes. Para as encontrar era preciso tornar-se conhecedor da vida política que então brotava espontânea das mais recônditas pregas da alma nacional, aguardando ansiosamente quem a pudesse orientar. Ou assim pensava o nosso herói...
Eis, pois, Mafalda e Gonçalo novamente no mesmo caminho, depois de tantos desvarios e desvairados precursos. Ao sentimento que os unia, sucederam desencontrados anseios políticos que os apartam. Haverá ainda alguma maçã de inverno destinada a ser partilhada pelos dois? Muito provavelmente...

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