- À fé de quem sou! – vociferou D. Thomaz de Byscaia, caracoleando o seu corcel. – À fé de quem sou! Pois não vos tenho dito e redito que a nossa presença em África é anti-natural, anti-patriótica e anti-histórica e que o nosso Portugal essencial, de Entre-Douro-e-Minho, provê perfeitamente as necessidades logísticas e simbólicas da nação? Não vos tenho eu anunciado e reanunciado o Portugal novo, o Portugal moderno, o d´Aquém-Mar, sob a égide do ceptro de um único rei brigantino, com sede em Guimarães, ou pelo menos ali na zona do Grande Porto?
Mafalda tremia que nem varas verdes, arrimada ao corrimão do magnífico quarto com vista para a deslumbrante baía de Luanda. D. Thomaz e seu corcel pairavam, terríveis, no luar de Março, algures entre o quinto e o sexto andares, suspensos no exterior do Hotel Polana. Mafalda insistira na recepção para ocupar o quarto que fora temporariamente de Gonçalo. Algo da sua presença imarcescível permanecia ali, um aramis ? um old spice? um vétiver de carven, embutido nas almofadas do confortável sofá.
- A menina tem alguma ideia do que é Portugal? O Portugal dos nossos ancestrais, delimitado pelas linhas geo-divinas abertas na terra por mão eterna, o rio Minho, o rio Douro, o rio Mondego, o rio Tejo, o rio Guadiana! Estas são as verdadeiras províncias portuguesas. O nosso ultramar é Lisboa, é o Alentejo, são os Algarves! Para que nos serve África, diga lá a mestra! É imensa, fica longe, não tem pontos de interesse, e ainda por cima somos mal recebidos! É como vê: despesa e maçada!
Na verdade, com todas as vicissitudes – alegrias e tristezas, angústias e felicidades, êxtases e incertezas, altos e baixos - a que fora sujeita nestes últimos tempos, Mafalda fizera-se mais mulher. Botara um belo corpo que lhe enchia o vestido evasé amarelo canário às bolas brancas de pura seda italiana, manga cava e decote redondo, pespontado a amarelo gema-de-ovo que embatia – pois que ela tremia – na barriga da perna bronzeada que terminava na sandália prateada à romana, de atilhos pela perna acima até ao joelho, mostrando os pés bem torneados já quase d´ébano. É verdade que se cafrealizara o seu tanto Mafalda. Todos aqueles impulsos, as ânsias, os ademanes, os langores, donde lhe vinham eles? Do cheiro da terra africana, pois então. Não havia ali culpa alguma, era em toda inocência que Mafalda sonhava.
- Este é o meu credo! – vociferou D. Thomaz de Byscaia. – Abaixo os traidores do integralismo lusitano! Unidade nacional? Mas onde está a fronteira natural? Como é possível a uma terra tão distante, tão diversa, tão alheia, fazer parte integrante da nação? Isto não são perguntas fúteis de um velho gagá, garanto-lhe, isto são questões que eu deixo ao futuro, questões a que o futuro terá de efectivamente responder de acordo com os ditames da consciência nacional. A grandeza de Portugal está em ser maneirinho, em ser manobrável. Ponha os olhos na cidade de Coimbra. Ponha os olhos em Leiria. Isso é que são cidades à escala humana. Vamos agora arranjar lenha para nos queimarmos?
Mafalda já não ouvia. Escutava, era interiormente que escutava, o sermonário de Cilinha. Ali encontrou ela a força para resistir. Proletários de todos os países, uni-vos! Não, não era bem isto. Proletários de todos os quadrantes? Proletários de todo o lado, era assim. O que seria exactamente um proletário? Teria a ver com contracepção? Cilinha é que lhe falava dos métodos anti-naturais de evitar que se cumprisse a vontade divina. E Cilinha dizia-se internacionalista, e isso era uma outra forma de religião, acreditava era noutras coisas, enquanto este velho de longa cabeleira branca encaracolada que caracoleava o seu corcel, trajando à toureiro antigo, de casaca de cetim turquesa com passamanes prateados que era toda uma obra de retrosaria, suspenso no ar com o cavalo branco, sendo o cavalo realmente difícil de explicar, lhe falava num Portugal continental que ela já quase esquecera, e que assimilava a paragens frias e cinzentas e insípidas e inodoras.
Mas de facto, se atentarmos bem, D. Thomaz não era parvo nenhum. Professava uma versão muito sui generis do integralismo lusitano que denominava “essencialismo lusitano”. O credo num um único rei, D. Afonso Henriques, sendo todos os consequentes “uma cambada de bastardos”. Mesmo sobre o nosso primeiro pairava, segundo Byscaya, um certo véu de suspeita, a possibilidade de bebés trocados no berço e imagina-se lá quantas aleivosias mais. Mas, vociferava D. Thomaz, à bout : “- Um homem tem de acreditar em qualquer coisa, nem que seja na mulher, quando ela lhe diz : é teu! Juro-te!”.
- Mas quem é o senhor, ao certo? – sussurrou Mafalda de Borgonha, reunindo as forças, amparada na memória da fortaleza de ânimo de Cilinha.
- Sou D. Thomaz de Byscaya e a menina é a minha filha Mafalda, olha que raio de conversa!
Mafalda desfaleceu de repente. O cabelo, alimentado pelos bons ares, os óleos essenciais de oliva e palma com que Cilinha regularmente os massajava, crescera muito, e vigoroso, espalhando-se-lhe pelas costas, quase chegando à barriga da perna e entrosando-se-lhe por vezes dolorosamente nos atilhos das sandálias. E a lua punha agora nele reflexos prateados.
- Sou uma Borgonha! – gemia Mafalda.
- Qual Borgonha? Andaste lá perto! Tens a terminação! És Byscaya, então eu não sei tão bem? Borgonha é o corno! – E deixou um pouco de vociferar D. Thomaz para lançar uma gargalhada tétrica.
A revelação ia penetrando Mafalda como um raio. Este cavaleiro era seu pai? Então o mordomo, José, com as histórias de velha bruxa, convencendo-a de que era ele o autor da sua vida, mentira! O que ela sofrera em silêncio, sabendo-se uma não-Borgonha, uma falsa nobre, o que a levara a sobrecompensar nos mimos que dera a sua mãe, nas caridades que lhe fizera, sabendo-a um poço de segredos, pecadora, excitante, impenitente. E afinal não seria uma Borgonha, mas era Byscaya! Não era mau de todo! Bem melhor que Passarinho, como o estúpido do José!
- E o seu irmão António – vociferou D. Thomaz - o seu irmão, Pedro, o seu irmão Luís e o outro, o mais novito…
- O Paulo, meu pai?
- A sua mãe era levada da breca, benza-a Deus. Pois é, menina, eu é que os fiz, os outros que os sustentem.
Desvanecia-se lentamente a voz propagandística de Cilinha, para dar lugar a outra, mais forte, mais terrível, que ia reboando nos côncavos do cérebro de Mafalda, aproximando-se sorrateira como um gato, mas temível, temível… “Eu é que os fiz! Eu é que os fiz!”. Era como uma canção de que não nos lembra a letra, só a música obsessiva, que se repete, em semicolcheias medonhas no nosso subconsciente, até nos enlouquecer. E o subconsciente de Mafalda, não tendo um grande pé direito, tornava todos estes sons mais confusos e excruciantes, andando por ali a bater, a bater…“Parece que Gonçalo também não é Cepúlveda…”. Quem o diz? Que voz é esta que agora lhe grita dentro da cabeça “Gonçalo também não é Cepúlveda”? E mais adiante: “Não é Cepúlveda, não senhor, é tão Cepúlveda como eu…”. Mafalda agoniza, enrolada na farta cabeleira. De joelhos, dobrada sobre si própria em posição fatal, tenta apagar a voz e o que ela diz. Estreita a cabeça magnífica com ambas as mãos e deixa escapar um soluço de aflição. Mas a voz achega-se, cada vez mais forte: “Andava aí um fidalgo a comer a D. Beatriz, um tal…”. Um tal? Mafalda não consegue ouvir. O sangue lateja nos ouvidos, dentro de si, no céu-da-boca, na nuca, nos recantos mais recônditos que Cilinha reclamava como só seus. Um nó aperta-lhe a garganta. Parece que adivinha uma fatalidade. O coração grita-lhe o que o cérebro não consegue consciencializar.
- E Gonçalo, meu pai? – pergunta ela, num fio de voz.
- Gonçalo está perdido – vociferou o velho. – Anda aí metido com os pretos nas palhotas, aquilo é uma miséria. Já o caso que ele teve consigo, temos de admitir que era uma grande porcaria. Mas a menina é…enfim…é boa, e homem é homem. Esqueça-o. Meta-se no Anunciação do Naufrágio e volte mas é para Portugal, que isto aqui já deu o que tinha a dar. Zarpa amanhã.
- Quer dizer então, meu pai, que Gonçalo é…
Mas D. Thomaz esfumara-se nos ares angolanos como a areia que nos escorrega por entre os dedos. Ouve-se ainda, do puro empíreo, como um raio de luar quente que é como uma brisa morna do sul que é como um sopro banal que é como um golpe de asa mais fresco:
- E olhe que o Almiro também…
De cabeça perdida, ainda em estado de choque e razoavelmente afogueada, as maçãs do rosto como brasas de inverno, Mafalda atira de revoada umas quantas peças de lingerie para dentro da mala de pele de cobra marchetada com apliques a lápis lazúli que está mais à mão, uma dúzia de vestidos de seda italiana, três ou quatro toilettes para o jantar, para uma saída à noite, para uma soirée dançante, para uma missa de gala, para uma ida ao cinema Império, na Avenida Marechal, a melhor e mais concorrida de Luanda, empurra acessórios e produtos de cosmética para o nécéssaire em crocodilo que era herança da família (ah, pensa ela, numa angústia, num desespero, mas qual família?) e foge precipitadamente do lugar que antecipara feliz e que se mostrara afinal horrendo e onde recebera não uma, mas uma polivalência de revelações.
*
Zarpa Mafalda no Anunciação do Naufrágio pelas sete da manhã. O navio, despejadas as tropas fandangas e a carne para canhão, regressa à capital da metrópole invulgarmente vazio. Arrimada ao corrimão do deque da primeira classe, Mafalda de Byscaya – assim assinara já com se nome de nascimento no livro de bordo – alonga os olhos de longas pestanas castanhas e reviradas para as paragens quentes de África que agora se sente na obrigação de abandonar. Se lhe perguntarem porquê, não conseguirá responder. Viu um velho e um cavalo suspensos no ar, do lado de fora da varanda, o velho mandou-a ir para Lisboa, ela vai. Alguém poderá algum dia acreditar nela? O coração diz-lhe que vá, que o velho é seu pai biológico, e manda a lei que se obedeça aos pais biológicos. Mas leva ainda na bagagem um terrível segredo, pelo menos uma terrível suspeita. O emprenhador-mor, D. Thomaz de Byscaya, temos agora mais de setenta por cento de certeza, é também o pai de…Não, Mafalda não quer tirar a conclusão das premissas. Mas não é ele o pai de toda a gente? Não, grita Mafalda de si para si, não quero saber a conclusão das premissas! Deixem-me viver ainda mais um pouco nesta ilusão de amor, neste sonho de ser a amada do belo e charmoso Gonçalo de Cepúlveda! Deixem-me, iludida e só, pensar nele como um Cepúlveda enquanto penso em mim como…Oh! Como o quê? “Ha!”- gritou-lhe de novo a voz sarcástica. - “É tão Cepúlveda como eu!”. Outra vez a mesma voz! De quem seria ela? Era uma voz aflautada, irritante, como a de uma criança embirrenta que nos quer tirar o nosso brinquedo favorito, o nosso cavalinho de pau com todas as cores do arco-íris, pintado à mão, onde sonhámos os nossos sonhos infantis, onde imaginámos em noites de deslumbramento que seríamos juristas, assessores, literatos, historiadores da Arte…
- Está sozinha no deque, fräulein?
Mafalda acordou do seu devaneio. À sua frente configurou-se uma visão celestial. Em contraluz, na sua farda branca de botões amarelos de capitão-de-fragata, aparecia-lhe, tal anjo descido dos céus, um homem alto, louro, lindo que lhe sorria de uns olhos azuis, meigos, ternamente. Mafalda mordeu a língua na precipitação de responder:
- Não – disse ela – agora está aqui você também.
Arrependeu-se logo do remoque, acaso teria dito de mais. Ele podia ficar a pensar que ela era alguma aventureira, uma qualquer que responde aos homens que a interpelam no deque. Ou fora talvez agressiva? Não, ele não podia pensar que ela era uma dessas mulheres que…Mafalda baixou os olhos, e de caminho observou as longas pernas de…Oh! Iria ele alguma vez dizer-lhe o nome?
- Capitão-de-fragata Heinrich von Schubert – apresentou-se o oficial – bem vinda a bordo do Deutscher Bluthund ! – E fez aquele bater de calcanhares que só os Alemães de certas castas sabem fazer. Mafalda teve um ligeiro aperto mitral, um pequeno incidente vascular, ao ruído de calcanhar contra calcanhar.
- Dóite…Então mas isto não é o Anunciação do Naufrágio?
Os lábios de Heinrich von Schubert abriram-se num sorriso luminoso e terno:
- Não, fräulein, vimo-nos obrigados a afundá-lo, ocupava no porto um espaço territorial de que estávamos muito necessitados.
Na sua aflição, Mafalda atirara a mala para o porão do primeiro navio que lhe aparecera à frente. Convencera-se de que seria obviamente um navio português. A realidade, qual velha desdentada e de hálito pestilencial, mostrava-lhe agora, como num espelho, um amargo desmentido.
Mafalda sentiu de repente a mão molhada. Olhou sobressaltada para o mar que subia até ao deque da primeira classe. Procurou, ansiosa, nos olhos azuis de Heinrich a resposta para a sua apreensão.
- Afundamo-nos? – perguntou, digna.
Schubert olhou-a, sorrindo, numa carícia:
- O Bluthund é um submarino, fräulein!
- Então, para onde vamos? – murmurou Mafalda, rendida ao encanto de Schubert.
- Para baixo? – perguntou ele.
E estendeu-lhe o braço, que ela tomou, sem querer perguntar mais nada.
Mafalda tremia que nem varas verdes, arrimada ao corrimão do magnífico quarto com vista para a deslumbrante baía de Luanda. D. Thomaz e seu corcel pairavam, terríveis, no luar de Março, algures entre o quinto e o sexto andares, suspensos no exterior do Hotel Polana. Mafalda insistira na recepção para ocupar o quarto que fora temporariamente de Gonçalo. Algo da sua presença imarcescível permanecia ali, um aramis ? um old spice? um vétiver de carven, embutido nas almofadas do confortável sofá.
- A menina tem alguma ideia do que é Portugal? O Portugal dos nossos ancestrais, delimitado pelas linhas geo-divinas abertas na terra por mão eterna, o rio Minho, o rio Douro, o rio Mondego, o rio Tejo, o rio Guadiana! Estas são as verdadeiras províncias portuguesas. O nosso ultramar é Lisboa, é o Alentejo, são os Algarves! Para que nos serve África, diga lá a mestra! É imensa, fica longe, não tem pontos de interesse, e ainda por cima somos mal recebidos! É como vê: despesa e maçada!
Na verdade, com todas as vicissitudes – alegrias e tristezas, angústias e felicidades, êxtases e incertezas, altos e baixos - a que fora sujeita nestes últimos tempos, Mafalda fizera-se mais mulher. Botara um belo corpo que lhe enchia o vestido evasé amarelo canário às bolas brancas de pura seda italiana, manga cava e decote redondo, pespontado a amarelo gema-de-ovo que embatia – pois que ela tremia – na barriga da perna bronzeada que terminava na sandália prateada à romana, de atilhos pela perna acima até ao joelho, mostrando os pés bem torneados já quase d´ébano. É verdade que se cafrealizara o seu tanto Mafalda. Todos aqueles impulsos, as ânsias, os ademanes, os langores, donde lhe vinham eles? Do cheiro da terra africana, pois então. Não havia ali culpa alguma, era em toda inocência que Mafalda sonhava.
- Este é o meu credo! – vociferou D. Thomaz de Byscaia. – Abaixo os traidores do integralismo lusitano! Unidade nacional? Mas onde está a fronteira natural? Como é possível a uma terra tão distante, tão diversa, tão alheia, fazer parte integrante da nação? Isto não são perguntas fúteis de um velho gagá, garanto-lhe, isto são questões que eu deixo ao futuro, questões a que o futuro terá de efectivamente responder de acordo com os ditames da consciência nacional. A grandeza de Portugal está em ser maneirinho, em ser manobrável. Ponha os olhos na cidade de Coimbra. Ponha os olhos em Leiria. Isso é que são cidades à escala humana. Vamos agora arranjar lenha para nos queimarmos?
Mafalda já não ouvia. Escutava, era interiormente que escutava, o sermonário de Cilinha. Ali encontrou ela a força para resistir. Proletários de todos os países, uni-vos! Não, não era bem isto. Proletários de todos os quadrantes? Proletários de todo o lado, era assim. O que seria exactamente um proletário? Teria a ver com contracepção? Cilinha é que lhe falava dos métodos anti-naturais de evitar que se cumprisse a vontade divina. E Cilinha dizia-se internacionalista, e isso era uma outra forma de religião, acreditava era noutras coisas, enquanto este velho de longa cabeleira branca encaracolada que caracoleava o seu corcel, trajando à toureiro antigo, de casaca de cetim turquesa com passamanes prateados que era toda uma obra de retrosaria, suspenso no ar com o cavalo branco, sendo o cavalo realmente difícil de explicar, lhe falava num Portugal continental que ela já quase esquecera, e que assimilava a paragens frias e cinzentas e insípidas e inodoras.
Mas de facto, se atentarmos bem, D. Thomaz não era parvo nenhum. Professava uma versão muito sui generis do integralismo lusitano que denominava “essencialismo lusitano”. O credo num um único rei, D. Afonso Henriques, sendo todos os consequentes “uma cambada de bastardos”. Mesmo sobre o nosso primeiro pairava, segundo Byscaya, um certo véu de suspeita, a possibilidade de bebés trocados no berço e imagina-se lá quantas aleivosias mais. Mas, vociferava D. Thomaz, à bout : “- Um homem tem de acreditar em qualquer coisa, nem que seja na mulher, quando ela lhe diz : é teu! Juro-te!”.
- Mas quem é o senhor, ao certo? – sussurrou Mafalda de Borgonha, reunindo as forças, amparada na memória da fortaleza de ânimo de Cilinha.
- Sou D. Thomaz de Byscaya e a menina é a minha filha Mafalda, olha que raio de conversa!
Mafalda desfaleceu de repente. O cabelo, alimentado pelos bons ares, os óleos essenciais de oliva e palma com que Cilinha regularmente os massajava, crescera muito, e vigoroso, espalhando-se-lhe pelas costas, quase chegando à barriga da perna e entrosando-se-lhe por vezes dolorosamente nos atilhos das sandálias. E a lua punha agora nele reflexos prateados.
- Sou uma Borgonha! – gemia Mafalda.
- Qual Borgonha? Andaste lá perto! Tens a terminação! És Byscaya, então eu não sei tão bem? Borgonha é o corno! – E deixou um pouco de vociferar D. Thomaz para lançar uma gargalhada tétrica.
A revelação ia penetrando Mafalda como um raio. Este cavaleiro era seu pai? Então o mordomo, José, com as histórias de velha bruxa, convencendo-a de que era ele o autor da sua vida, mentira! O que ela sofrera em silêncio, sabendo-se uma não-Borgonha, uma falsa nobre, o que a levara a sobrecompensar nos mimos que dera a sua mãe, nas caridades que lhe fizera, sabendo-a um poço de segredos, pecadora, excitante, impenitente. E afinal não seria uma Borgonha, mas era Byscaya! Não era mau de todo! Bem melhor que Passarinho, como o estúpido do José!
- E o seu irmão António – vociferou D. Thomaz - o seu irmão, Pedro, o seu irmão Luís e o outro, o mais novito…
- O Paulo, meu pai?
- A sua mãe era levada da breca, benza-a Deus. Pois é, menina, eu é que os fiz, os outros que os sustentem.
Desvanecia-se lentamente a voz propagandística de Cilinha, para dar lugar a outra, mais forte, mais terrível, que ia reboando nos côncavos do cérebro de Mafalda, aproximando-se sorrateira como um gato, mas temível, temível… “Eu é que os fiz! Eu é que os fiz!”. Era como uma canção de que não nos lembra a letra, só a música obsessiva, que se repete, em semicolcheias medonhas no nosso subconsciente, até nos enlouquecer. E o subconsciente de Mafalda, não tendo um grande pé direito, tornava todos estes sons mais confusos e excruciantes, andando por ali a bater, a bater…“Parece que Gonçalo também não é Cepúlveda…”. Quem o diz? Que voz é esta que agora lhe grita dentro da cabeça “Gonçalo também não é Cepúlveda”? E mais adiante: “Não é Cepúlveda, não senhor, é tão Cepúlveda como eu…”. Mafalda agoniza, enrolada na farta cabeleira. De joelhos, dobrada sobre si própria em posição fatal, tenta apagar a voz e o que ela diz. Estreita a cabeça magnífica com ambas as mãos e deixa escapar um soluço de aflição. Mas a voz achega-se, cada vez mais forte: “Andava aí um fidalgo a comer a D. Beatriz, um tal…”. Um tal? Mafalda não consegue ouvir. O sangue lateja nos ouvidos, dentro de si, no céu-da-boca, na nuca, nos recantos mais recônditos que Cilinha reclamava como só seus. Um nó aperta-lhe a garganta. Parece que adivinha uma fatalidade. O coração grita-lhe o que o cérebro não consegue consciencializar.
- E Gonçalo, meu pai? – pergunta ela, num fio de voz.
- Gonçalo está perdido – vociferou o velho. – Anda aí metido com os pretos nas palhotas, aquilo é uma miséria. Já o caso que ele teve consigo, temos de admitir que era uma grande porcaria. Mas a menina é…enfim…é boa, e homem é homem. Esqueça-o. Meta-se no Anunciação do Naufrágio e volte mas é para Portugal, que isto aqui já deu o que tinha a dar. Zarpa amanhã.
- Quer dizer então, meu pai, que Gonçalo é…
Mas D. Thomaz esfumara-se nos ares angolanos como a areia que nos escorrega por entre os dedos. Ouve-se ainda, do puro empíreo, como um raio de luar quente que é como uma brisa morna do sul que é como um sopro banal que é como um golpe de asa mais fresco:
- E olhe que o Almiro também…
De cabeça perdida, ainda em estado de choque e razoavelmente afogueada, as maçãs do rosto como brasas de inverno, Mafalda atira de revoada umas quantas peças de lingerie para dentro da mala de pele de cobra marchetada com apliques a lápis lazúli que está mais à mão, uma dúzia de vestidos de seda italiana, três ou quatro toilettes para o jantar, para uma saída à noite, para uma soirée dançante, para uma missa de gala, para uma ida ao cinema Império, na Avenida Marechal, a melhor e mais concorrida de Luanda, empurra acessórios e produtos de cosmética para o nécéssaire em crocodilo que era herança da família (ah, pensa ela, numa angústia, num desespero, mas qual família?) e foge precipitadamente do lugar que antecipara feliz e que se mostrara afinal horrendo e onde recebera não uma, mas uma polivalência de revelações.
*
Zarpa Mafalda no Anunciação do Naufrágio pelas sete da manhã. O navio, despejadas as tropas fandangas e a carne para canhão, regressa à capital da metrópole invulgarmente vazio. Arrimada ao corrimão do deque da primeira classe, Mafalda de Byscaya – assim assinara já com se nome de nascimento no livro de bordo – alonga os olhos de longas pestanas castanhas e reviradas para as paragens quentes de África que agora se sente na obrigação de abandonar. Se lhe perguntarem porquê, não conseguirá responder. Viu um velho e um cavalo suspensos no ar, do lado de fora da varanda, o velho mandou-a ir para Lisboa, ela vai. Alguém poderá algum dia acreditar nela? O coração diz-lhe que vá, que o velho é seu pai biológico, e manda a lei que se obedeça aos pais biológicos. Mas leva ainda na bagagem um terrível segredo, pelo menos uma terrível suspeita. O emprenhador-mor, D. Thomaz de Byscaya, temos agora mais de setenta por cento de certeza, é também o pai de…Não, Mafalda não quer tirar a conclusão das premissas. Mas não é ele o pai de toda a gente? Não, grita Mafalda de si para si, não quero saber a conclusão das premissas! Deixem-me viver ainda mais um pouco nesta ilusão de amor, neste sonho de ser a amada do belo e charmoso Gonçalo de Cepúlveda! Deixem-me, iludida e só, pensar nele como um Cepúlveda enquanto penso em mim como…Oh! Como o quê? “Ha!”- gritou-lhe de novo a voz sarcástica. - “É tão Cepúlveda como eu!”. Outra vez a mesma voz! De quem seria ela? Era uma voz aflautada, irritante, como a de uma criança embirrenta que nos quer tirar o nosso brinquedo favorito, o nosso cavalinho de pau com todas as cores do arco-íris, pintado à mão, onde sonhámos os nossos sonhos infantis, onde imaginámos em noites de deslumbramento que seríamos juristas, assessores, literatos, historiadores da Arte…
- Está sozinha no deque, fräulein?
Mafalda acordou do seu devaneio. À sua frente configurou-se uma visão celestial. Em contraluz, na sua farda branca de botões amarelos de capitão-de-fragata, aparecia-lhe, tal anjo descido dos céus, um homem alto, louro, lindo que lhe sorria de uns olhos azuis, meigos, ternamente. Mafalda mordeu a língua na precipitação de responder:
- Não – disse ela – agora está aqui você também.
Arrependeu-se logo do remoque, acaso teria dito de mais. Ele podia ficar a pensar que ela era alguma aventureira, uma qualquer que responde aos homens que a interpelam no deque. Ou fora talvez agressiva? Não, ele não podia pensar que ela era uma dessas mulheres que…Mafalda baixou os olhos, e de caminho observou as longas pernas de…Oh! Iria ele alguma vez dizer-lhe o nome?
- Capitão-de-fragata Heinrich von Schubert – apresentou-se o oficial – bem vinda a bordo do Deutscher Bluthund ! – E fez aquele bater de calcanhares que só os Alemães de certas castas sabem fazer. Mafalda teve um ligeiro aperto mitral, um pequeno incidente vascular, ao ruído de calcanhar contra calcanhar.
- Dóite…Então mas isto não é o Anunciação do Naufrágio?
Os lábios de Heinrich von Schubert abriram-se num sorriso luminoso e terno:
- Não, fräulein, vimo-nos obrigados a afundá-lo, ocupava no porto um espaço territorial de que estávamos muito necessitados.
Na sua aflição, Mafalda atirara a mala para o porão do primeiro navio que lhe aparecera à frente. Convencera-se de que seria obviamente um navio português. A realidade, qual velha desdentada e de hálito pestilencial, mostrava-lhe agora, como num espelho, um amargo desmentido.
Mafalda sentiu de repente a mão molhada. Olhou sobressaltada para o mar que subia até ao deque da primeira classe. Procurou, ansiosa, nos olhos azuis de Heinrich a resposta para a sua apreensão.
- Afundamo-nos? – perguntou, digna.
Schubert olhou-a, sorrindo, numa carícia:
- O Bluthund é um submarino, fräulein!
- Então, para onde vamos? – murmurou Mafalda, rendida ao encanto de Schubert.
- Para baixo? – perguntou ele.
E estendeu-lhe o braço, que ela tomou, sem querer perguntar mais nada.
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