Mafalda acordou perturbada. Dormira mal na noite anterior. Na insónia do seu espírito, pairava ainda a memória fotográfica dos momentos passados com Gonçalo. Mas agora era Inverno, e a chuva gritava na vidraça do quarto. Ao longe, o mar. Encapelado e forte, como os cabelos daquele que lhe tirava o sono. Gonçalo. Não tinha vontade de se levantar da cama. Para quê? Que sentido tinha descer à rua, enfrentar a manhã e o mundo? Mafalda suspirava, querendo acreditar que, muito mais do que a lembrança de sarracenas noites, tinha sido a sopa de peixe com leite da véspera que lhe assentara mal. Mas não. O mal de Mafalda era outro – e ela sabia-o. Doía-lhe sabê-lo. E, no entanto, Mafalda sorria. De que sorria Mafalda? Talvez por se encontrar nas mãos de uns amadores que procuravam dar espessura e sentido a uma personagem sem qualquer tipo de interesse, exceptuando os olhos amendoados e os longos cabelos que em tempos foram de Gonçalo. Este partira, fugindo também ele àquele amor que ambos sabiam ser impossível. Souberam-no desde o primeiro minuto, desde o primeiro segundo. Mas não se importaram. Quiseram vivê-lo da primeira à última gota, como se fosse um cálice amargo de aguardente de medronho. Agora, guardava nos lábios o sabor irrepetível – ou não? – daquele amor que nunca chegou a nenhum altar nem teve rendas brancas ou candelabros de prata. Padres, menos ainda. Nem jóias de família, há muito vendidas para pagar as dívidas que antepassados contraíram em mesas de pano verde ou em lençóis malditos. Nas veias de Mafalda corria salgado o mar de Cascais. E, na sua fúria de viver, a força das ondas do Guincho, capazes de arrancar à vida mesmo o mais experiente dos banhistas. Até Gonçalo, musculoso e forte, se vira em apuros naquelas vagas traiçoeiras, tão traiçoeiras como os acasos da vida, que os juntaram por momentos para logo os afastarem para sempre − ou talvez não... Mais do que a dor da separação, Mafalda sofria a esperança de um reencontro. Afinal, Gonçalo não partira para muito longe. Angola era nossa, já ali, e não seria por certo a guerra que a impediria de visitá-lo. Bastava meter-se num voo low cost para Lourenço Marques e, em algumas horas, duas criaturas únicas e irrepetíveis voltariam a amar-se sobre as brasas da terra angolana. As insónias de Mafalda alimentavam o sonho de reencontrar o amado naquele pedaço de Portugal banhado pelo cálido Pacífico. De resto, África, misteriosa e profunda, tinha a poesia dos grandes espaços, o que conferia indiscutivelmente mais sal e glamour a uma paixão tão incompreendida por esse inferno que são os outros. Se Gonçalo tivesse partido para Sernache do Vouga ou para Freamunde, como chegou a pensar, esta história muito provavelmente nunca teria existido. Muito provavelmente. Por aqueles matos adentro, Gonçalo logo se destacara como o mais bravo do seu pelotão. Era, pelo menos, o mais bravo dos alferes do pelotão que comandava. Os seus homens confiavam nele e ele confiava nos seus homens. À noite, escrevia-lhes as cartas que mandavam às namoradas, em terras longínquas, rodeadas de pinhais e granitos, lobos uivantes e criaditas de servir. Era o pior de tudo. Aquelas cartas traziam-lhe à lembrança Mafalda. Como estaria Mafalda? Teria encontrado um novo amor? Casado, talvez? Com filhos? Quantos, três, quatro? Gonçalo partira há dois meses para África. Há dois meses se despedira de Mafalda. A última noite. E, agora, talvez Mafalda o tivesse trocado por outro, casado até, com um rancho de crianças a brincar em seu redor num esplendoroso relvado de uma moradia vasta. Não, não era possível! As juras que fizeram um ao outro foram demasiado fortes para que um amor tamanho se esfumasse como um dente-de-leão na brisa da Primavera. Mas agora era Inverno e chovia. Chovia no seu coração. Um coração que mesmo aqueles que o tentavam descrever se viam em grandes dificuldades, pois não era fácil construir um personagem como aquele. Um menino bem-nascido, que gostava de carros sport e se tornara homem com uma nanny inglesa, que ainda se recordava dos bigodes húmidos do nosso rei D. Carlos, mártir da fúria assassina dos marxistas-leninistas da República. Gonçalo, porém, era mais do que um «menino-bem» da Linha. O facto de a Mãe ter nascido em Agualva-Cacém, o segredo mais escondido da família Cepúlveda, contribuía por certo para que Gonçalo fosse mais − ou menos, consoante as perspectivas − do que um enfant terrible de Cascais. Nada disso ensombrava o brasão dos Cepúlvedas, a nobre pedra-de-armas que Gonçalo fizera bordar na sua farda de gala e que exibia garbosamente nos chás dançantes do Hotel Polana. Era o menino bonito de Luanda, por quem todas as negras da sociedade, filhas dos dirigentes do PAIGC, suspiravam nas castas matinés do Polana. Todas sonhavam casar um dia com Gonçalo. E se a comissão de serviço se prolongasse, essa era uma hipótese que não pode ser descartada. Leitor assíduo de Gilberto Freyre, crente e praticante furioso da miscigenação luso-tropicalista, Gonçalo acabaria por desposar uma crioula rica. Muito provavelmente. A história de Mafalda e Gonçalo emperrara aqui. Separados por algumas dezenas de quilómetros, os amantes não ajudavam ao desenrolar do folhetim novelesco. Seria necessário aditar um outro personagem ou matar um actor secundário. A velha e querida nanny recusava-se a desempenhar este papel. Vira guerras, revoluções, sobrevivera à pneumónica e, com mágoa, às violações em massa do Exército Vermelho na Berlim em chamas. Atravessara a República e o Estado Novo e, por isso, sentia-se com legítimo direito a não ser vilmente despachada logo à terceira passagem de um romance que tinha todos os ingredientes para dar certo. E, de facto, era verdade. Mafalda e Gonçalo tinham nascido um para o outro. Bonitos, elegantes, invejados pela melhor sociedade de Cascais, partilhavam os mesmos gostos: o toureio a cavalo, a pesca da truta, a física quântica. E até ambos se debatiam com a dúvida: «Deus existe?». Frequentadores das Conferências de S. Vicente de Paula, tinham as mesmas preocupações sociais pelos pobres. Por isso, nem Mafalda nem Gonçalo jamais desejaram ser pobres. De resto, se Mafalda ou Gonçalo fossem pobres, remediados até, esta história muito provavelmente nunca teria existido. Muito provavelmente. Almiro, não. Almiro era um pobre como daqueles que já não se fazem. Pobres como Almiro já não existem. Teve de ser alugado a um romance neo-realista e, garanto-lhe, caro leitor, o aluguer de Almiro não está a sair barato. É que, para já, os pobres têm o péssimo defeito de comerem demais. O orçamento deste projecto literário encontra-se, assim, seriamente ameaçado pelas despesas de catering. Sabendo-se essencial ao desenrolar da novela, Almiro cedo começou a fazer exigências de estrela: orquídeas brancas no camarim, passe social, espumoso de Sangalhos cuvée 1957, estudos superiores de Inglês Técnico. Um dia, cerejas do Fundão, quando não era o tempo delas; no outro, rapazitos da Obra da Rua; no outro ainda, aulas de piano com Rostropovitch. O seu desempenho acabaria por fazer esquecer estes caprichos de diva. De facto, como pobre Almiro era imbatível. Os pais eram pobres, os avós eram pobres, os avós dos avós nem existiam, de tão pobres que foram. Havia, é certo, um tio emigrante, que conduzia um carro de praça em Genebra, e chegara a alimentar a pretensão de comprar o velho solar dos Cepúlvedas. Mas, não interessando à economia da narrativa, passemos de imediato a anular o tio de Almiro num desastre de viação na vizinha Espanha, após horas de fadiga ao volante, na fobia de chegar à terra que um dia o viu partir − e que lhe chorou o Mercedes destruído. Almiro desconhecia o pai. Mas no rosto e no porte ostentava as marcas inconfundíveis de uma fidalguia de outrora. Sim, Almiro era fruto de uma noite de insónia de um velho conde, D. Thomaz de Biscaia. Nascera do efémero alívio de um aristocrata tão devasso quanto temente a Deus. Sua mãe era uma das mais belas raparigas de Agualva-Cacém, o que obviamente nos conduz à singela mas decisiva conclusão de que Almiro e Gonçalo poderiam ser, pelo menos, meios-irmãos. O facto de D. Fernão Cepúlveda ter falecido dois anos antes do nascimento de Gonçalo constitui, por certo, motivo para duvidar também da paternidade. E, se a isto juntarmos a circunstância de D. Thomaz de Biscaia ser visita de casa dos Cepúlvedas, tudo nos levará a crer que Almiro e Gonçalo eram, afinal, filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Beatriz Cepúlveda ter-se-ia deixado seduzir pelos retorcidos bigodes do lúbrico D. Thomaz de Biscaia? Muito provavelmente.
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