sábado, 3 de janeiro de 2009

XI

Os pródigos ventos de Abril, que ainda sopravam fortes por em fins de Agosto no Verão Quente, mal podiam deixar de conspirar, na sua cálida turbulência, para reunir amantes há muito perdidos (um do outro e cada um por si). Quando não também acoplar amantes novos tomados de fervor revolucionário ou pavor reaccionário, pendores patéticos de sinal contrário mas comparável intensidade. Mas, se as condições histórico-sociais, — tudo o indica — conspiram para o imperioso desenlace que desponta já na mente arguta do leitor, a órbita planetária que fará gravitar Mafalda para Gonçalo e o vício para a versa está ainda por traçar — se bem que vários times de astrónomos, tanto amadores como profissionais, se encontrem já a tratar do assunto. Muito provavelmente.
Acolhida pela prima Maria Armanda nas malhas conjuradas da extrema-esquerda, Mafalda bebia já dogma político e baldes de tinto a eito como uma proleta de ginjeira. Era tudo tão novo, tão giro, tão cheio de linhas-mestras e plataformas, de luta livre e amor de classes, que cedo esquecia as noites de paixão teutónica e submarina que tinha abandonado no Mar da Palha! No seu julgamento momentâneo, aquela valsa voluptuosa que a submergiu, a bela música que tinha feito com o bem dotado von Schubert soava-lhe a Sinfonia Incompleta. “Sim”, reflectia ela com os seus neurónios (durante um comício particularmente entediante em apoio à justa revelia da Rádio Renascença), “ qual é a rapariga que não sonha e almeja ter um submarino só seu, fálico, metálico, fétido, fatídico e fusiforme, recheado de louros nazis bem espartilhados em cabedal negro? Capitaneados por Henrich, um Richy Rich como o meu Bertle, tão bem pulido e versado nas coisas de penetração estelta das águas subtropicais e outras que tais?” Mas depois mais filosófica: “Mas estas coisas não podem durar. As guerras acabam, ou mudam-se para outras águas mais sangrentas, e há sempre as cargas de profundidade a interromperem os êxtases por mais beatíficos. É sabido. E depois, por mal ou bem os meus cálculos subnáuticos, acabaram por me trazer, sem eu querer, às faldas da minha terra! Coincidência? Ou será... fado?” E neste momento preciso, como se os seus pensamentos tivessem sido lidos pelo sonoplasta sentado na cabine â sua esquerda, a distinta voz de António Calvário ecoa pelo recinto entoando “Ó minha terra,... Onde eu nasci,... Quantas saudades eu tenho de ti...”
Mas, antes que Mafalda se pudesse espantar ou comover, um piquete de camaradas indignados precipita-se sobre a cabine arrancando simultaneamente o Calvário do gira discos e o pobre sonoplasta do seu assento e aplicando, num gesto expedito, o merecido e simultâneo correctivo aos dois infractores, i.e., despedaçando o disco do Calvário na cabeça calva do incauto! O súbito surto de violência voz só soçobrou quando a voz Zé Mário Branco (“A cantiga é uma Arma”) veio restaurar apressadamente o original cariz ideológico à reunião. Mafalda maravilhava-se com a volatilidade destas situações, coisa tão diferente da paz podre da ditadura que tanto envenenara a memória dos seus anos tenros. Também ela sentia a urgência de perpetrar gestos prenhes de significado libertador como partir discos horríveis na cabeça de imbecis que os ouvem. Assim começava a procurar desenfreadamente pelo imenso arquivo da Renascença pela caixote marcado “José Cid” quando Maria Armanda a interrompeu bruscamente desta missão tão meritória vindo arrastá-la pelo braço para um outro comício, desta feita em apoio à revelia dos camaradas do Jornal República. Maria Armanda militava num grupúsculo maoísta chamado PPRM (Partido Para Reactivar a Malta) provindo de uma cisão (alguns chamavam-lhe expulsão) de um outro grupo mais vultuoso chamado MRPP (Muita Rapaziada Pelada prá Política) cujos quadros viriam a assumir, num futuro algo longínquo, um papel de extrema relevância na formação da incipiente União Europeia. Mas, por esta altura, esses futuros eurocratas entretinham-se a cultivar barbas profusas e a cobrir paredes com murais hiperrealistas aonde não podia faltar as figuras venerandas do camarada Mao abraçado ao camarada Orlando de Bastos, Secretário-geral e líder incontestado do MRPP. E digo incontestado porque o camarada Orlando era basto avesso à mais leve e inocente sugestão de crítica intestina. Aliás a cisão MRPP-PPRM ficou a dever-se, como bem noticiado no República, a uma controversa “gafe” pecaminosa de que se tornou culpado o camarada Frazão Matoso ao especular, num artigo no “Luta Popular”, órgão do partido, que as metáforas e símiles tão caras ao camarada Orlando não fossem talvez as mais apropriadas aos tempos decorrentes. Propunha ele que expressões como “A Grande Revolução Proletária tem de avançar na História como uma locomotiva a todo o vapor!” fossem substituídas por algo de mais actual como, avançava ele: “ A Grande Revolução tem de elevar-se no firmamento revolucionário como o supersónico Concorde na sua rota transcontinental!” A arrogância da proposta mereceu-lhe a imediata denúncia por óbvia cedência à “linha negra” do Partido e a consequente expulsão extensiva a toda a “tendência Matosista”, seguida de uma escalada retórica que identificava Frazão e os seus apaniguados com os projectos sinistros da CIA, MI-5 e do Quai d’Orsay. (Já nessa altura a agência de espionagem francesa era de tal forma secreta que nem o seu nome era conhecido e assim era referida pela nome do cais aonde os seus agentes se encontravam para beber absinto e fumar gauloises). Sem esmorecer Frazão proclamou a palavra-de-ordem “O matosismo é o maoísmo total!” e fundou, toute-suite, o seu partido rectificador declarando-se Secretário General incontestado dos seus efectivos que, na altura, consistiam essencialmente de Maria Armanda, o seu parceiro estudante de Engenheira, de seu nome José Platão Carvalho Pinto de Sousa, mas mais conhecido pel’o “Besugo”, e dois camaradas brasileiros que os acompanhavam frequentemente ao pandeiro e cuíca com aquele deleite e abandono de que só mesmo os brasileiros são capazes. A esta alegre confraria acrescentava-se agora Mafalda que achava tudo encantador e se aplicava a aprender as bases da doutrina matosista que Maria Armanda lhe dispensava em catadupas interpretando as máximas, algo crípticas, que Frazão debitava, borrifadas de perdigotos: “O capitalismo e o imperialismo são tigres de papel de mortalha! Não, correcção: são tigres de papel higiénico! Daquele de péssima qualidade que é como lixa inflamando o traseiro das massas exploradas! “.
Mafalda confiava nos instintos da prima a despeito de mal reconhecer nela o bebé chorudo e chorão que a tia Isilda trazia e quando em vez ao casarão da sua infância. “Nós que vimos das classes privilegiadas”, assegurava-lhe Maria Armanda, “temos de ser duplamente atentas e vigilantes no que toca à rectidão da nossa postura revolucionária. Convêm decorar as directivas do camarada Matoso mesmo que seja, por vezes, assim, difíceis de perceber Mafalda concordava, tanto com o imperativo de transcender a sua má consciência de classe como o de ponderar as balbuciantes invectivas do camarda Frazão até porque encontrava algo de charme no Secretário Geral, um què qualquer de macambúzio e tròpego tão afim ao macho português do qual se confessava uma certa saudade. Principalmente depois da sua galante exposição aos rigores marciais da sexualidade germânica tão técnica e superiormente regimentada, a sua libido ansiava já todo-um-pouco pela inépcia trôpega e desconcertante nas coisas de cama que só de um verdadeiro amante lusitano pode fornecer. Mas se o Frazão era o pretexto para esta constatação era de facto Gonçalo por quem ainda e sempre almejava. Gonçalo esse que — sem ela o saber — se acoitava — sem ele o suspeitar — numa proximidade tão mais próxima, numa vizinhança, tão mais vizinha do ambos se davam conta.
Para sermos mais precisos (porque precisar é preciso, escrever não é preciso, como dizia o Caetano) e facultar uma expressão urbana e geográfica ao leitor no espaço-tempo da narrativa, enquanto Mafalda acantonava na sede do PPRM: na cave de um palacete ali à Lapa cedida por uma “tia” do Frazão, ausente em Inglaterra, Gonçalo partilhava com MachuN’gu um saguão acanhado na rua das Pretas. Era mesmo por de cima do Gaibirú, um buteco mal afamado onde na altura, se despia noites uma bailarina exótica conhecida, sem mais, pela Dama de Poiais. A relação entre os dois tinha-se algo esfriado desde que tinham chegado a Lisboa e o grande entusiasmo de Gonçalo pelo seu projecto de recolonização africanista soçobrava, com o seu sebastianismo perene, entre os vapores ebulientes da realidade do pós-25. MachuN’gu, que agora adoptara a simples alcunha de Mané havia descoberto em si aquela sensibilidade delicada e minuciosa que é tão frequente nos gigantes gentis e, com ela, o mundo inacabável e abismal das rendas e bordados, do ponto cruz e dos labores de bilros, do croché e do tricô, e por fim da tapeçaria de Arraiolos que, no momento em que o reencontramos, ocupava a singular destreza tão cedo adquirida pelos seus dedos bojudos. Trazia Manê, a esta arte tão antiga, tão apreciada e tão lusa, o acréscimo inusitado da sua herança africana infusa neste caso numa cena de queimada, tão realista que enchia o acanhado saguão de fumo espesso.
Gonçalo via com um misto de benevolência e apreensão esta nova propensão do seu companheiro de aventuras, o seu “sidekick” e “wingman”, o seu “sexta-feira” com quem tanto partilhara na ilha deserta da vida. Mas o facto era que Gonçalo também tinha entretanto caído presa, não de uma mas de duas, das suas obsessões mais antigas que se infernizava em combinar: Mafalda, o seu amor, quiçá perdido, e a física quântica que tinha aprofundado, qual foça do Mindanao, nos seus longos meses de cativeiro angolano a ponto de se ter tornado, num dos peritos mais espertos, dos amadores mais bem armados, enfim um dos expoentes mais exponenciais da disciplina. A conjugação destas duas vertentes primárias na cordilheira da sua vida assaltava as longas noites de insónia a que os sujeitavam a barulhada festiva que ressoava do Gaibirú.
Tinha Gonçalo aperfeiçoado o arsenal matemático de técnicas de cálculo aproximativo a ponto de obter uma equação, dita de Schrodinger, para a função de onda, Ψ de M, que segundo a bem firmada teoria quântica descreve a evolução espácio-temporal de Mafalda. A dita equação, escrita a lápis fino numas meras seiscentas e treze folhas de papel manteiga empilhadas à sua frente, jazia agora ali como um último mas alcançável desafio à mão de semear. Bastava-lhe integrar a equação com a ajuda de apropriadas condições inicias, para lhe extrair os valores próprios e, com eles, resgatar Mafalda ao Espaço de Hilbert, por assim dizer. Restar-lhe-ia então apenas quadrar os ditos valores, traçar as amplitudes da função própria e exprimi-las cuidadosamente nas coordenadas geodésicas apropriadas para se lhe revelar enfim o paradeiro de Mafalda. Muito provavelmente.
E é crucial o esclarecer, a este ponto, e na falta gritante de um rodapé aonde se consignem as proverbiais notas do mesmo, que o provavelmente é para ser sublinhado, já que a teoria quântica é a um tempo determinista mas probabilística e como tal não seria exactamente Mafalda que iria subjazer e emergir do monumental cálculo que Gonçalo se propunha entabular mas sim a densidade de probabilidade porventura centrada na sua pessoa. Mesmo assim Gonçalo sentia o seu corpo e alma a vibrar harmonicamente na antecipação dos contornos sinuosos da representação tridimensional (ainda por obter) da quadratura funcional de sua amada. Sabia que era todo os seu ser que ansiava por ela, se bem que alguns órgãos mais duramente penavam do que outros. Mas Gonçalo conteve-se antes de se precipitar na manipulação dos dados. Como bom cientista não queria arrogar-se a pensar que tinha à sua frente de facto o Ψ de Mafalda mas tão-somente um candelabro para iluminar o seu caminho de regresso a ela.
Porque semelhante empresa jamais havia sido tentada, Gonçalo viu-se na contingência de reunir, por meios bem pouco ortodoxos, os recursos monumentais necessários ao seu megalómano projecto. Assim dispôs-se a roubar ciclos de cálculo do super computador do LNEC, na altura o mais capaz e veloz de toda a península. Veio a saber-se muito mais tarde que os ciclos roubados seriam responsáveis por alguns erros de insuficiência estrutural que estariam na origem do súbito colapso de pontes, calçadas e edifícios na Reboleira que se verificaram alguns anos mais tarde. Muito provavelmente.
Mas nada desse escrúpulo deteve Gonçalo que agora contemplava o produto final dos seus labores que cobria o pouco espaço que restava no minúsculo apartamento sob a forma de pilhas colossais de papel manteiga milimétrico intercaladas pelos mapas militares à escala 1/12 que firmariam os cálculos ao mundo real. Cada pilha englobava uma parte do mundo identificada de maneira bastante encantadora por naprons alegóricos bordados por Mané na sua versão naive do apreciado estilo da Madeira. Gonçalo examinava com uma lupa um troço particularmente intrigante da função de onda de Mafalda aparentemente localizada no interior do Oceano Pacífico (!?!) Para seu espanto a curva que representava a evolução provável do centro de massa de Marisa apresentava um número considerável secções particularmente agitadas com vibrações de extraordinária amplitude separadas por períodos quiescentes, curtos mas discerníveis! Gonçalo perguntava-se se, em vez de uma radiografia do historial de sua amada, não teria ao invés descortinado um surto de actividade, de tectónica, de vulcanismo ekpirótico ou talvez mesmo uma rede de submarinos nucleares? Muito provavelmente.
Mas semelhantes desvios por pouco o detinham no galope analítico que inexoravelmente o conduziria a Mafalda, ou assim cria crer. Um projecto de semelhantes ambições não se compadecia com desvios perturbativos e equívocos passados; tratava-se de dar com a Mafalda do aqui e do agora que, na circunstância, eram o lá e então de Gonçalo. Nessa conjunção em particular ele tinha dificuldade em congregar a concentração de que necessitava para analisar o resto dos dados que o aproximavam da Mafalda presente. A música infernal e o ruído de vozes que emanavam do Gabirú tornavam-se numa distracção permanente que não conseguia dissipar. Devia ser uma das noites de cartaz da Dama de Poiares e os seus cultores engrossavam o público, já de si virulento, que frequentava a espelunca. (Desnecessário será precisar, ao leitor atento, que um dos assíduos frequentadores do “Gabirú” se contava o nosso Bezugo, fiel amante da Maria Armanda, mas amigo do strip à moda de Poiares. Mas adiante.) “Tira as cuecas! Tira o soutien!” ouvia-se distintamente no cântico polvilhado de gargalhadas que acompanhava o número da Dama sob a música pesada no compasso do bombo e pratos. Consternado pela visível irritação de Gonçalo, Mané propôs: “Dexa queu vô lá, darre uma palavrinha!” e saiu porta fora pelas escadas abaixo em direcção ao Gabirú. Gonçalo, primeiro, aliviado, apreciou por um momento a cordata intenção de Mané, sempre atento aos seus empenhos e irritações. Mas depois ponderou o efeito que não teria a súbita entrada de um personagem com as proporções gargantuescas de Mané, adjuntas à sua densa pigmentação, num botequim atochado de machos lusitanos ineptos, bêbados e virilizados muito para lá do controle dos seus esfíncteres. “Não o devia ter deixado lá ir abaixo!”, pensou Gonçalo. “Isto vai dar bronca. Muito provavelmente.”

PRM: posto de recepção morse
Organizações Gerais de Matérias Ardentes
Posto de Emissão Morse
Partido Comunista Proletário

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