quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

XIII

Mas, antes que Mané reagisse, já Gonçalo estava caído sobre o frondoso colo de Mafalda. Não perdeu tempo. O coração dela tremia. Que revelações viriam aí? O que é que podia acontecer? Gonçalo, de mãos abertas, segurou-lhe o braço, convencido que ela iria ceder ao fim de alguns minutos. Vinha mesmo discurso.
“Proclamo-te meu território. Quero fazer da tua graciosa figura todo um continente por explorar, uma terra de vera cruz. Serei o único a colocar aqui a bandeira para que ninguém tenha dúvidas. Dizer: quem manda sou eu.
“Ainda teremos o nosso 1º de Dezembro, podes estar certa.
“Tanto tempo fugido. Tanto tempo pelos cantos à procura do centro, do resumo de tudo. Saiba a senhora que desde o primeiro momento que contemplei a cara imarcescível, soube que havia penetrado no edénico jardim do amor. Ciente dos riscos da travessia, procuro vê-la em cada pessoa que por mim passa. Aceite esta amargurada confissão com um sorriso nos lábios e uma postura recta nas costas. Percorra-me no meu norte e no meu sul, no meu este e no meu oeste. Peça-me favores que eu, sim, retribuirei com gosto. Por mim já nem me importo com os acordos salariais de cada ano. A tentação trago-a no bolso devidamente domada. Sou um primitivo, eis a verdade.
Mafalda escutou tudo em silêncio. Sondou a face esquerda de Mané só para perceber se havia algum segredo que ela não atingia, alguma linguagem especiosa entre os dois. Depois, levantando-se de supetão, disse subindo a voz:
- Estou farta. Farta de ladainhas. Farta de promessas. Deixemo-nos de metáforas. Eu aspiro à mansidão do lar, à quietude de um domingo. Por favor, Gonçalo, vem ter comigo a minha casa amanhã à noite. Já chega. Agora, se não te importas, vou.
E foi.

*

Gonçalo tinha perdido subtileza. Conhecia ainda os seus próprios defeitos com uma clareza pouco comum nos homens. Mas cada vez tinha menos prudência, menos disciplina. “Conhece-te a ti mesmo”, recomendavam os primeiros sábios. Gonçalo não discordava. Mas, para ele, a combinação moderna era entre o “Conhece-te a ti mesmo” e o “Sobrestima-te a ti mesmo”. Quem conseguisse viver segundo este adágio moderno tinha garantida uma vida de felicidade. Seria uma vida de mentira, bem entendido, mas as mentiras que impomos a nós próprios não são rigorosamente mentiras. Ou são?
Quando Gonçalo se dirigiu a casa de Mafalda pensou como seria reencontrar a casa dela, levemente modificada, o tapete de pontas estragadas, o reposteiro que lembrava outros tempos de maior solicitude. Sexo? Sim, Gonçalo também pensava no sexo. Faltava-lhe desde que regressara a Portugal. Porém, homem minguado, pensava mais na possibilidade do sexo do que no sexo em si. A possibilidade é que o mantinha desperto e vivo. Na véspera, tinha falado ao telefone com Mafalda e o assunto não enganava:
“ Quero ver-te. Preciso de te ver.”
Ele respondeu:
“ Sim, mas primeiro a visão e depois o olfacto”.
“ Gostas de mulheres bonitas”.
“ Para mim mulher bonita não chega. Tem de recitar pelo menos a Ode Triunfal e não inclinar o rabiosque para lhe realçar os contornos. Não quero cá logros, sou sensível a logros.
Gonçalo não foi pontual porque, horas antes, chegou a pensar se estaria a fazer o que devia. Era um indeciso e havia de o ser sempre. Esperado às oito, apareceu hora e meia depois. Mafalda recebeu-o com um novo corte de cabelo e um par de óculos. Gonçalo disse que não gostava.
“Porque é que me convidaste para vir?” A Gonçalo parecia apropriado um pouco de desfaçatez. “O que tens para me dizer? Dois passos no escuro e eu serei teu no papel. Amas-me, Mafalda?
“ Acho que sim. Pelo menos dar-te-ia uma vesícula se precisasses.
“ E um rim?
“ Os dois rins.”
“ Achas que nos safamos? Para quando o fim do nosso Inverno?
“ Que frase tão bonita?
“ Responde-me.
“ Tens-me agora, não tens? Deus, quando faz uma panela, também faz a tampa. Não duvides.”
Sentaram-se. E o que se passou depois merecia acompanhamento em flauta. As persianas correram-se. As luzes faiscaram. As palavras perderam-se. As coisas não eram ditas, eram sussurradas. As coisas não eram pensadas, eram ditas.

*

Às onze da noite tocou o telefone. Sobressalto na casa. Telefonemas nocturnos costumam ser suspeitos. Mafalda encostou o ouvido ao auscultador e não reconheceu a voz. Perguntou quem era. Perguntou outra vez. Do outro lado alguém disse: “Vá à janela”.

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