Minhas Senhoras e meus senhores, é a hora de – como agora se diz – pôr ordem na casa.
Os tempos estão para isso – são tempos de cabos de esquadra.
Mas há atenuantes: as coisas derraparam, não havia regras, era o vê-se-te-avias generalizado, estava-se mesmo a ver que ia dar ASAE nisto. Até os Deuses já estavam confusos com tantas circunvoluções no enredo. Falo desta história, claro, pensavam que me referia a quê?
Recapitulando: Mafalda já foi apaixonada por Gonçalo; já foi ingénua; já foi Matilde (uma rameira grosseira, ou vice-versa); já foi esquizofrénica viajante; já foi bi-sexual esporadicamente recorrente; e ei-la, reencaminhada pela voz do sangue para o Anunciação do Naufrágio, navio de transporte de razoável envergadura e algum pundonor, a confundi-lo com um reduzido submarino alemão da classe Nerval, o que revela, calculando muito por baixo, acentuada miopia.
Por perplexa que seja a personagem, acompanhê-mo-la, até porque nada mais resta: no moinho da ficção é sempre mais o farelo do que a farinha e só Mafalda apresenta DOP, prazo de validade e cores ainda compatíveis com a colocação no mercado. Formosa desce agora as estreitíssimas escadas a pique da torre do submarino Deutscher Bluthund, numa proeza de movimentação sincronizada, de braço dado com Heinrich von Schubert, que só agora assentou praça neste relato, mas que, em perfeita harmonia com pregressos desenvolvimentos, já foi, pelo menos e sucessivamente:
a) transformista no Traansval, onde fora adestrado nos ademanes e no domínio da lusa língua pelo velho D. Thomaz de Byscaia;
b) corsário free lancer no Zanzibar – onde tomara de assalto, saqueara e afundara o paquete em que, num daqueles férteis acasos da Fortuna, seguia o jovem Gonçalo, acabado de se evadir dos seus captores com o seu companheiro MachuN’gu, em rota para a Terra Santa;
c) concessionário da IA Motors no Burundi – e, et pour cause (disso e do poliglotismo), parceiro de negócio de Manuel de Benevides em certos contratos, mutuamente vantajosos, de abastecimento das administrações provinciais de Sofala, Benguela e Quelimane;
d) assistente de Erich von Stronheim em Hollywood – onde, por via da proficiência na língua de Camões, chegara a dirigir Cilinha Damião, à época uma muito dotada e muito requisitada imitadora de Carmen Miranda.
É dizer que o sobrinho-neto de Franz Peter Schubert – o von veio-lhe da parte da mãe deste – entra nesta história com uma legitimidade de quatro costados. O mesmo se diga, de resto, do Deutscher Bluthund, que começou por ser uma traineira em Agualva-Cacém – onde chegara a ter uma relação logística com a concepção da mãe de Mafalda –, passou depois por um breve e apagado período como porta-aviões da frota suíça – altura em que foi essencialmente utilizado para a pesca à truta que tanto serviu para, em outra latitude, aproximar Gonçalo e a primeira Mafalda –, e fez o estágio para cruzador em vésperas da Iª Grande Guerra, embora tenha sido chumbado e, portanto, reciclado em U-boat nas Novas Oportunidades do cabo de esquadra da época.
De qualquer modo, chega de pormenores pessoais: regressemos ao fiel relato dos eventos que levaram à extinção da vida inteligente na Terra – com a possível excepção de quem assim tão mal a relata. O caso é que, logo após a prodigiosa descida, de braço dado, de Heinrich von Schubert e de Mafalda de Borgonha, aliás, de Byscaia, pelos 11 finos degraus de aço temperado da torre, depois de selada a escotilha e de ganha a profundidade de cruzeiro, os membros da tripulação do acanhado submersível, ne varietur – por terem passado a ter sempre debaixo d’olho (no caso do Karl Max, que é estrábico convergente, d’ambos) as formas de Mafalda, claramente distintas do padrão em uso na marinha imperial, e por descurarem, em consequência, a vigilância sobre as componentes mais estáticas do seu eco-sistema – foram vítimas de uma pandemia de conflitos localizados e de intensidade variável entre as respectivas cabeças e as inevitáveis protuberâncias do equipamento de bordo.
No momento, porém, tirando as intensas cefaleias e o aumento do consumo de analgésicos, ninguém atribuiu importância de maior ao facto, embora devesse ser de suspeitar que ainda poderia sobrevir uma tragédia (invariavelmente prevista para a presença de mulheres em submarinos) dessa soma de efeitos secundários com a perturbação causada por uma presença feminina num espaço exíguo e sobrelotado de testosterona, com a subsequente quebra das rotinas tão essenciais à harmonia subaquática. (Por exemplo: em vez da habitual redução de movimentos, todos os tripulantes circulavam, ao menor pretexto, da proa à popa, e da popa à proa, de modo a roçar o Chanel n.º 5 e os tufos do vestido de seda de fraulein Mafalda).
Mas não nos adiantemos. Por enquanto, tudo se passa no (ventre do) melhor dos mundos, posto que abafado, metalicamente couraçado e 100 pés abaixo do nível do mar: Mafalda seduz-se, com toda a compostura, com o espírito teutónico vertido em Português de lei e, sobretudo, com o aprumado porte marcial e o azul faíscante dos olhos do comandante, e o comandante deslumbra-se com o apurado design de formas e a cor de pele proporcionados pela evolução das espécies mediterrânicas, numa admiração toda darwinista, em jubilosa antecipação de uma miscigenação de cromossomas que revitalize a herança ariana do património genético dos suevos, tornada homeopática por séculos de combinações com gentes de desvairadas estirpes. De momento, porém, as pulsões sexuais do par, cujo crescendo se torna cada vez mais fisicamente perceptível para quem centra atenções nas calças do comandante (o maricas do Adolf Hitler) ou no peito da D. Mafalda (os restantes seis atentos observadores), tem de se sublimar em galanteios (dela) e rubores (dele), gerando um contagioso frémito de excitação no interior do submarino que o faz dilatar perigosamente. Nada de estranho: é um princípio bem estabelecido da física que a excitação dos átomos aumenta as trocas de energia e dilata o volume dos corpos.
Ou talvez a causa desse inchaço tenha sido apenas a não interrupção da descarga de ar comprimido nos tanques de lastro, que seria da responsabilidade do Karl, mas de que ele se esqueceu completamente quando os seios de D. Mafalda se elevaram mesmo à sua frente, projectando distintamente um pequeno dedal nas extremidades. Fosse o que fosse, certo é que, tendo atingido o máximo da expansão estruturalmente consentida, se seguiu uma brusca explosão da tensão acumulada e – rebentadas as guilhotinas de entrada de água nos tanques de lastro – o ar comprimido se escoou bruscamente pela ré, disparando o submarino para a frente no momento em que contornava um obstáculo assinalado pelo sonar. Acto contínuo, foram todos os seus ocupantes sacudidos dos seus lugares e violentamente projectados para as traseiras do submarino, no arranque, e, segundos depois – apenas o tempo de se calarem os gritos da anterior queda –, devolvidos para diante, com o choque brutal que se lhe seguiu, travando, abrupto, o movimento de que vinham animados, e proporcionando um novo coro paradoxal de gritos de dor e pavor. Tínham batido em algo duro – especialmente o maricas do Adolf, que conseguiu fazer o pleno dos choques e das viagens intercalares agarrado ao baixo-ventre do comandante.
Como o embate cortou os circuitos de iluminação, ficaram mergulhados nas trevas, o que, num primeiro momento, até nem era mau para a moral: se a água estivesse a jorrar das fissuras do casco, ninguém fazia questão de assistir. O cofre do submarino só não era uma câmara escura porque, a espaços, se distinguiam as trémulas luzes de emergência perto da posição de comando, sensivelmente a meio da embarcação. Quando habituados a essa parca luminosidade, perceberam que a coluna do periscópio se elevava a 45º graus, sinal de que tinham tombado de borco no fundo do mar. Devia ser por isso que o passadiço entre a proa e a ré, normalmente ao alcance das botas militares, parecia ter-se tornado um desses extravagantes elementos de decoração gay, a dar nas vistas pendurado na parede. Terá sido então que o pânico se instalou, porque ninguém mais pensou nas mazelas que tinha adquirido enquanto o sub se convertera em shaker, nem ninguém se aproveitou da ocasião para testar tactilmente a consistência do corpo de Mafalda – como fizera o marinheiro que a derrubara em idêntico estado de emergência à chegada à baía de Luanda. Mas talvez a extrapolação seja injustificada: no que toca ao tratamento das mulheres não se podem comparar portugueses da Mouraria com alemães, quiçá austríacos, de qualquer lugar.
Heinrich, pelo menos, não pensou – e tinha uma orelha a menos (felizmente a esquerda, a de menor uso nos concertos de ópera de Wagner) e a face direita assente numa superfície extraordinariamente macia e bem cheirosa, que só podia fazer parte da anatomia dela (da Mafalda, não da orelha – não se façam parvos). Tanto quanto pôde o A. divisar na obscuridade, o comandante elevou-se cuidadosamente sobre um fundo de corpos entrelaçados – uma aproximação confusa a um plano americano de uma orgia –, firmando os pés no que lhe pareceu serem os travessões dos beliches, e alcançou a plataforma de comando imediatamente depois do imediato, o tenente Herman. Num instante, toda a mannschaft estava nos seus postos, tentando equilibrar-se nas novas coordenadas de posição. As boas notícias eram não estar a entrar água no interior, sinal de inexistência de danos estruturais – e haver uma mulher naquela prisão. As más notícias eram os motores não funcionarem, os tanques de lastro estarem inutilizados, os medidores de pressão e de profundidade terem passado a zero e o oxigénio dar para pouco mais de 20 horas – se ficassem quietos. No fundo, estavam num caixão colectivo, ainda para mais no fundo.
Não podiam fazer nada para se salvar. Mesmo que conseguissem reactivar a TSF e pedir ajuda, não sabiam se ela poderia ser prestada, nem como, nem mesmo se alguém os conseguiria encontrar antes de se lhes esgotarem as reservas de ar. Situação mais série-B do que isto não consigo inventar: à primeira vista as más notícias ganhavam por 26-zero, e ainda nem tinham chegado ao intervalo.
*
Embora a cena supra fosse ideal para deixar de herança, não é aqui que o relato muda de agulha. Há coisas a esclarecer porque – como até o mais destreinado dos leitores percebe – não foi por acaso que o Deutscher Bluthund usurpou no cais o lugar do Anunciação, dando-se depois ao tormentoso trabalho de se revestir de esferovite pintada em tromp l’oeil a imitar o afundado – o que, já agora, exclui das características entrópicas de Mafalda a miopia; nem foi por acaso que o único oficial da marinha de guerra alemã fluente nesse estranho dialecto meridional falado em Angola de costa à contra-costa se encontrava na ponte, em uniforme de gala, para a receber; nem foi por acaso que a Industrial Light and Magic recebeu uma fortuna, através de companhias fictícias sul-americanas, para efectuar uma sessão de projecção numa tela transparente suspensa em frente do 5º e 6º andares do Hotel Polana, com uma banda sonora a ser emitida em exclusivo para o quarto que seria identificado na recepção como “o do Gonçalo” (e preparado em conformidade), tudo segundo um guião chegado de Lisboa.
Aliás, como se sabe, não há acasos absolutamente nenhuns.
*
Heinrich mandou subir o periscópio. O motor, claro, não funcionava, mas podia acoplar-se uma manivela e fazê-lo subir à custa do Viagra muscular. O caso é que nem assim. O periscópio devia estar enterrado no fundo do oceano. A pergunta de um milhão de dólares era apurar a profundidade a que estariam. Tinham-se mantido a 100 pés desde que se afastaram da costa, mas a detecção de um obstáculo no sonar levara o imediato a dar ordem para subir aos 50. Foi quando o Karl começou a injectar ar nos tanques de lastro e se esqueceu de parar. Ninguém o acusou porque ninguém estava a prestar a devida atenção às leituras dos mostradores: qualquer um podia ter notado o que estava a acontecer. Desde esse momento até ao choque que os projectara para trás tinham passado não mais de quatro minutos, e todos concordaram com a conclusão do comandante: até ao rebentamento dos tanques tinham de ter estado sempre em trajectória de ascensão. Por outro lado, o segundo choque ocorrera segundos depois do primeiro, e não tinha havido outro. A conclusão do comandante era a de que tinham ficado onde tinham batido. Mesmo sendo imponderável o movimento de afundamento, se depois de embaterem no obstáculo e serem projectados para diante não tivessem ficado encalhados, ao afundarem-se, a forma do submarino teria corrigido a inclinação que apresentava e se mantinha constante. O emperramento do periscópio demonstrava que o segundo choque fora com o fundo. Havia uma bela possibilidade, portanto, de estarem a três ou quatro metros da superfície. O óbice óbvio era não haver registo, nas cartas marítimas, de nenhum banco de areia ou recife na sua rota: tanto quanto delas se sabia, estavam em mar alto. Por outro lado, o sonar tinha detectado um obstáculo – por isso tinham subido para 50 pés –, e nem sempre as cartas das costas africanas eram plenamente fiáveis.
Mesmo que estivessem perto da superfície, isso não garantia nada: se abrissem a escotilha o oceano entraria de roldão, e poderia ser impossível, mesmo só com um metro de água por cima, sair do submarino antes de ele se encher. Só se pudessem aproximar-se da saída à medida que a entrada de água diminuísse de ímpeto, podiam ganhar impulso suficiente para a transpor, um de cada vez. À cadência de um a cada 10 segundos, o último precisaria de 1m 20s de fôlego extra, mais o que o demorasse desde o submarino à superfície. Não era fácil, mas não era impossível. É claro que depois disso podiam vir outros problemas: ficar a boiar no oceano, a 80 milhas da costa, é sair da frigideira para cima do lume, mas, verdadeiramente, não havia escolha: ficarem fechados não iria melhorar-lhes a situação. Franz, Fritz e Wilhelm, os mecânicos de bordo, pediram, e obtiveram, 15 horas para tentar recuperar os motores e, com eles, tentar libertar o submarino, mas desistiram ao fim de uma: os danos eram irreparáveis.
Heinrich sugerira que os lugares na linha de fuga fossem sorteados, mas como o primeiro era de Mafalda, e ele era o único que conseguia comunicar com ela, o segundo foi-lhe atribuído. Karl, sentindo-se culpado, recusou outro lugar que não o último e, durante a hora da tentativa de reparação dos motores, Adolf tentou sucessivamente comprar o terceiro, o quarto, o quinto ou o sexto lugares, que eram os que estavam à sua frente. A última tentativa, com o imediato Herman, foi especialmente mal sucedida porque este achou tal conduta imprópria e prometeu expulsá-lo da marinha. Heinrich narrou os últimos eventos no diário de bordo, explicou os procedimentos a uma Mafalda aterrada (impropriamente, dadas as aquáticas circunstâncias), distribuiu lugares e recomendações para resistir ao ímpeto da iminente inundação, e, depois de uma oração colectiva, deu autorização a Karl para abrir a escotilha.
Estavam todos preparados para a entrada de água, não para a entrada de sol – mas foi a luz que entrou de jorro pela abertura virada a poente do corpo metálico. Como o perceberam logo que, em festa e incredulidade, saíram do seu bojo, este tinha adornado na costa de uma frondosa ilha. O jacto de ar libertado pela explosão das eclusas dos tanques de lastro deve ter dado ao submarino, já muito perto da superfície e da linha de terra, um impulso ascendente que o projectou para cima desta, em vez de contra ela. De facto, como todos perceberam, sem a distracção de Karl as consequências podiam ter sido bem piores. Afinal os dados de pressão e de profundidade não tinham sido repostos a zero por deficiência de funcionamento, mas porque essa era a sua devida leitura. Estavam salvos, embora tivessem outros ordálios pela frente: eles não o sabiam, nunca o saberiam, mas quase um século depois outros náufragos chegariam à mesma ilha e a sua odisseia, muito parecida com a deles, tornar-se-ia uma das séries televisivas de culto da primeira década do Século XXI.
Os tempos estão para isso – são tempos de cabos de esquadra.
Mas há atenuantes: as coisas derraparam, não havia regras, era o vê-se-te-avias generalizado, estava-se mesmo a ver que ia dar ASAE nisto. Até os Deuses já estavam confusos com tantas circunvoluções no enredo. Falo desta história, claro, pensavam que me referia a quê?
Recapitulando: Mafalda já foi apaixonada por Gonçalo; já foi ingénua; já foi Matilde (uma rameira grosseira, ou vice-versa); já foi esquizofrénica viajante; já foi bi-sexual esporadicamente recorrente; e ei-la, reencaminhada pela voz do sangue para o Anunciação do Naufrágio, navio de transporte de razoável envergadura e algum pundonor, a confundi-lo com um reduzido submarino alemão da classe Nerval, o que revela, calculando muito por baixo, acentuada miopia.
Por perplexa que seja a personagem, acompanhê-mo-la, até porque nada mais resta: no moinho da ficção é sempre mais o farelo do que a farinha e só Mafalda apresenta DOP, prazo de validade e cores ainda compatíveis com a colocação no mercado. Formosa desce agora as estreitíssimas escadas a pique da torre do submarino Deutscher Bluthund, numa proeza de movimentação sincronizada, de braço dado com Heinrich von Schubert, que só agora assentou praça neste relato, mas que, em perfeita harmonia com pregressos desenvolvimentos, já foi, pelo menos e sucessivamente:
a) transformista no Traansval, onde fora adestrado nos ademanes e no domínio da lusa língua pelo velho D. Thomaz de Byscaia;
b) corsário free lancer no Zanzibar – onde tomara de assalto, saqueara e afundara o paquete em que, num daqueles férteis acasos da Fortuna, seguia o jovem Gonçalo, acabado de se evadir dos seus captores com o seu companheiro MachuN’gu, em rota para a Terra Santa;
c) concessionário da IA Motors no Burundi – e, et pour cause (disso e do poliglotismo), parceiro de negócio de Manuel de Benevides em certos contratos, mutuamente vantajosos, de abastecimento das administrações provinciais de Sofala, Benguela e Quelimane;
d) assistente de Erich von Stronheim em Hollywood – onde, por via da proficiência na língua de Camões, chegara a dirigir Cilinha Damião, à época uma muito dotada e muito requisitada imitadora de Carmen Miranda.
É dizer que o sobrinho-neto de Franz Peter Schubert – o von veio-lhe da parte da mãe deste – entra nesta história com uma legitimidade de quatro costados. O mesmo se diga, de resto, do Deutscher Bluthund, que começou por ser uma traineira em Agualva-Cacém – onde chegara a ter uma relação logística com a concepção da mãe de Mafalda –, passou depois por um breve e apagado período como porta-aviões da frota suíça – altura em que foi essencialmente utilizado para a pesca à truta que tanto serviu para, em outra latitude, aproximar Gonçalo e a primeira Mafalda –, e fez o estágio para cruzador em vésperas da Iª Grande Guerra, embora tenha sido chumbado e, portanto, reciclado em U-boat nas Novas Oportunidades do cabo de esquadra da época.
De qualquer modo, chega de pormenores pessoais: regressemos ao fiel relato dos eventos que levaram à extinção da vida inteligente na Terra – com a possível excepção de quem assim tão mal a relata. O caso é que, logo após a prodigiosa descida, de braço dado, de Heinrich von Schubert e de Mafalda de Borgonha, aliás, de Byscaia, pelos 11 finos degraus de aço temperado da torre, depois de selada a escotilha e de ganha a profundidade de cruzeiro, os membros da tripulação do acanhado submersível, ne varietur – por terem passado a ter sempre debaixo d’olho (no caso do Karl Max, que é estrábico convergente, d’ambos) as formas de Mafalda, claramente distintas do padrão em uso na marinha imperial, e por descurarem, em consequência, a vigilância sobre as componentes mais estáticas do seu eco-sistema – foram vítimas de uma pandemia de conflitos localizados e de intensidade variável entre as respectivas cabeças e as inevitáveis protuberâncias do equipamento de bordo.
No momento, porém, tirando as intensas cefaleias e o aumento do consumo de analgésicos, ninguém atribuiu importância de maior ao facto, embora devesse ser de suspeitar que ainda poderia sobrevir uma tragédia (invariavelmente prevista para a presença de mulheres em submarinos) dessa soma de efeitos secundários com a perturbação causada por uma presença feminina num espaço exíguo e sobrelotado de testosterona, com a subsequente quebra das rotinas tão essenciais à harmonia subaquática. (Por exemplo: em vez da habitual redução de movimentos, todos os tripulantes circulavam, ao menor pretexto, da proa à popa, e da popa à proa, de modo a roçar o Chanel n.º 5 e os tufos do vestido de seda de fraulein Mafalda).
Mas não nos adiantemos. Por enquanto, tudo se passa no (ventre do) melhor dos mundos, posto que abafado, metalicamente couraçado e 100 pés abaixo do nível do mar: Mafalda seduz-se, com toda a compostura, com o espírito teutónico vertido em Português de lei e, sobretudo, com o aprumado porte marcial e o azul faíscante dos olhos do comandante, e o comandante deslumbra-se com o apurado design de formas e a cor de pele proporcionados pela evolução das espécies mediterrânicas, numa admiração toda darwinista, em jubilosa antecipação de uma miscigenação de cromossomas que revitalize a herança ariana do património genético dos suevos, tornada homeopática por séculos de combinações com gentes de desvairadas estirpes. De momento, porém, as pulsões sexuais do par, cujo crescendo se torna cada vez mais fisicamente perceptível para quem centra atenções nas calças do comandante (o maricas do Adolf Hitler) ou no peito da D. Mafalda (os restantes seis atentos observadores), tem de se sublimar em galanteios (dela) e rubores (dele), gerando um contagioso frémito de excitação no interior do submarino que o faz dilatar perigosamente. Nada de estranho: é um princípio bem estabelecido da física que a excitação dos átomos aumenta as trocas de energia e dilata o volume dos corpos.
Ou talvez a causa desse inchaço tenha sido apenas a não interrupção da descarga de ar comprimido nos tanques de lastro, que seria da responsabilidade do Karl, mas de que ele se esqueceu completamente quando os seios de D. Mafalda se elevaram mesmo à sua frente, projectando distintamente um pequeno dedal nas extremidades. Fosse o que fosse, certo é que, tendo atingido o máximo da expansão estruturalmente consentida, se seguiu uma brusca explosão da tensão acumulada e – rebentadas as guilhotinas de entrada de água nos tanques de lastro – o ar comprimido se escoou bruscamente pela ré, disparando o submarino para a frente no momento em que contornava um obstáculo assinalado pelo sonar. Acto contínuo, foram todos os seus ocupantes sacudidos dos seus lugares e violentamente projectados para as traseiras do submarino, no arranque, e, segundos depois – apenas o tempo de se calarem os gritos da anterior queda –, devolvidos para diante, com o choque brutal que se lhe seguiu, travando, abrupto, o movimento de que vinham animados, e proporcionando um novo coro paradoxal de gritos de dor e pavor. Tínham batido em algo duro – especialmente o maricas do Adolf, que conseguiu fazer o pleno dos choques e das viagens intercalares agarrado ao baixo-ventre do comandante.
Como o embate cortou os circuitos de iluminação, ficaram mergulhados nas trevas, o que, num primeiro momento, até nem era mau para a moral: se a água estivesse a jorrar das fissuras do casco, ninguém fazia questão de assistir. O cofre do submarino só não era uma câmara escura porque, a espaços, se distinguiam as trémulas luzes de emergência perto da posição de comando, sensivelmente a meio da embarcação. Quando habituados a essa parca luminosidade, perceberam que a coluna do periscópio se elevava a 45º graus, sinal de que tinham tombado de borco no fundo do mar. Devia ser por isso que o passadiço entre a proa e a ré, normalmente ao alcance das botas militares, parecia ter-se tornado um desses extravagantes elementos de decoração gay, a dar nas vistas pendurado na parede. Terá sido então que o pânico se instalou, porque ninguém mais pensou nas mazelas que tinha adquirido enquanto o sub se convertera em shaker, nem ninguém se aproveitou da ocasião para testar tactilmente a consistência do corpo de Mafalda – como fizera o marinheiro que a derrubara em idêntico estado de emergência à chegada à baía de Luanda. Mas talvez a extrapolação seja injustificada: no que toca ao tratamento das mulheres não se podem comparar portugueses da Mouraria com alemães, quiçá austríacos, de qualquer lugar.
Heinrich, pelo menos, não pensou – e tinha uma orelha a menos (felizmente a esquerda, a de menor uso nos concertos de ópera de Wagner) e a face direita assente numa superfície extraordinariamente macia e bem cheirosa, que só podia fazer parte da anatomia dela (da Mafalda, não da orelha – não se façam parvos). Tanto quanto pôde o A. divisar na obscuridade, o comandante elevou-se cuidadosamente sobre um fundo de corpos entrelaçados – uma aproximação confusa a um plano americano de uma orgia –, firmando os pés no que lhe pareceu serem os travessões dos beliches, e alcançou a plataforma de comando imediatamente depois do imediato, o tenente Herman. Num instante, toda a mannschaft estava nos seus postos, tentando equilibrar-se nas novas coordenadas de posição. As boas notícias eram não estar a entrar água no interior, sinal de inexistência de danos estruturais – e haver uma mulher naquela prisão. As más notícias eram os motores não funcionarem, os tanques de lastro estarem inutilizados, os medidores de pressão e de profundidade terem passado a zero e o oxigénio dar para pouco mais de 20 horas – se ficassem quietos. No fundo, estavam num caixão colectivo, ainda para mais no fundo.
Não podiam fazer nada para se salvar. Mesmo que conseguissem reactivar a TSF e pedir ajuda, não sabiam se ela poderia ser prestada, nem como, nem mesmo se alguém os conseguiria encontrar antes de se lhes esgotarem as reservas de ar. Situação mais série-B do que isto não consigo inventar: à primeira vista as más notícias ganhavam por 26-zero, e ainda nem tinham chegado ao intervalo.
*
Embora a cena supra fosse ideal para deixar de herança, não é aqui que o relato muda de agulha. Há coisas a esclarecer porque – como até o mais destreinado dos leitores percebe – não foi por acaso que o Deutscher Bluthund usurpou no cais o lugar do Anunciação, dando-se depois ao tormentoso trabalho de se revestir de esferovite pintada em tromp l’oeil a imitar o afundado – o que, já agora, exclui das características entrópicas de Mafalda a miopia; nem foi por acaso que o único oficial da marinha de guerra alemã fluente nesse estranho dialecto meridional falado em Angola de costa à contra-costa se encontrava na ponte, em uniforme de gala, para a receber; nem foi por acaso que a Industrial Light and Magic recebeu uma fortuna, através de companhias fictícias sul-americanas, para efectuar uma sessão de projecção numa tela transparente suspensa em frente do 5º e 6º andares do Hotel Polana, com uma banda sonora a ser emitida em exclusivo para o quarto que seria identificado na recepção como “o do Gonçalo” (e preparado em conformidade), tudo segundo um guião chegado de Lisboa.
Aliás, como se sabe, não há acasos absolutamente nenhuns.
*
Heinrich mandou subir o periscópio. O motor, claro, não funcionava, mas podia acoplar-se uma manivela e fazê-lo subir à custa do Viagra muscular. O caso é que nem assim. O periscópio devia estar enterrado no fundo do oceano. A pergunta de um milhão de dólares era apurar a profundidade a que estariam. Tinham-se mantido a 100 pés desde que se afastaram da costa, mas a detecção de um obstáculo no sonar levara o imediato a dar ordem para subir aos 50. Foi quando o Karl começou a injectar ar nos tanques de lastro e se esqueceu de parar. Ninguém o acusou porque ninguém estava a prestar a devida atenção às leituras dos mostradores: qualquer um podia ter notado o que estava a acontecer. Desde esse momento até ao choque que os projectara para trás tinham passado não mais de quatro minutos, e todos concordaram com a conclusão do comandante: até ao rebentamento dos tanques tinham de ter estado sempre em trajectória de ascensão. Por outro lado, o segundo choque ocorrera segundos depois do primeiro, e não tinha havido outro. A conclusão do comandante era a de que tinham ficado onde tinham batido. Mesmo sendo imponderável o movimento de afundamento, se depois de embaterem no obstáculo e serem projectados para diante não tivessem ficado encalhados, ao afundarem-se, a forma do submarino teria corrigido a inclinação que apresentava e se mantinha constante. O emperramento do periscópio demonstrava que o segundo choque fora com o fundo. Havia uma bela possibilidade, portanto, de estarem a três ou quatro metros da superfície. O óbice óbvio era não haver registo, nas cartas marítimas, de nenhum banco de areia ou recife na sua rota: tanto quanto delas se sabia, estavam em mar alto. Por outro lado, o sonar tinha detectado um obstáculo – por isso tinham subido para 50 pés –, e nem sempre as cartas das costas africanas eram plenamente fiáveis.
Mesmo que estivessem perto da superfície, isso não garantia nada: se abrissem a escotilha o oceano entraria de roldão, e poderia ser impossível, mesmo só com um metro de água por cima, sair do submarino antes de ele se encher. Só se pudessem aproximar-se da saída à medida que a entrada de água diminuísse de ímpeto, podiam ganhar impulso suficiente para a transpor, um de cada vez. À cadência de um a cada 10 segundos, o último precisaria de 1m 20s de fôlego extra, mais o que o demorasse desde o submarino à superfície. Não era fácil, mas não era impossível. É claro que depois disso podiam vir outros problemas: ficar a boiar no oceano, a 80 milhas da costa, é sair da frigideira para cima do lume, mas, verdadeiramente, não havia escolha: ficarem fechados não iria melhorar-lhes a situação. Franz, Fritz e Wilhelm, os mecânicos de bordo, pediram, e obtiveram, 15 horas para tentar recuperar os motores e, com eles, tentar libertar o submarino, mas desistiram ao fim de uma: os danos eram irreparáveis.
Heinrich sugerira que os lugares na linha de fuga fossem sorteados, mas como o primeiro era de Mafalda, e ele era o único que conseguia comunicar com ela, o segundo foi-lhe atribuído. Karl, sentindo-se culpado, recusou outro lugar que não o último e, durante a hora da tentativa de reparação dos motores, Adolf tentou sucessivamente comprar o terceiro, o quarto, o quinto ou o sexto lugares, que eram os que estavam à sua frente. A última tentativa, com o imediato Herman, foi especialmente mal sucedida porque este achou tal conduta imprópria e prometeu expulsá-lo da marinha. Heinrich narrou os últimos eventos no diário de bordo, explicou os procedimentos a uma Mafalda aterrada (impropriamente, dadas as aquáticas circunstâncias), distribuiu lugares e recomendações para resistir ao ímpeto da iminente inundação, e, depois de uma oração colectiva, deu autorização a Karl para abrir a escotilha.
Estavam todos preparados para a entrada de água, não para a entrada de sol – mas foi a luz que entrou de jorro pela abertura virada a poente do corpo metálico. Como o perceberam logo que, em festa e incredulidade, saíram do seu bojo, este tinha adornado na costa de uma frondosa ilha. O jacto de ar libertado pela explosão das eclusas dos tanques de lastro deve ter dado ao submarino, já muito perto da superfície e da linha de terra, um impulso ascendente que o projectou para cima desta, em vez de contra ela. De facto, como todos perceberam, sem a distracção de Karl as consequências podiam ter sido bem piores. Afinal os dados de pressão e de profundidade não tinham sido repostos a zero por deficiência de funcionamento, mas porque essa era a sua devida leitura. Estavam salvos, embora tivessem outros ordálios pela frente: eles não o sabiam, nunca o saberiam, mas quase um século depois outros náufragos chegariam à mesma ilha e a sua odisseia, muito parecida com a deles, tornar-se-ia uma das séries televisivas de culto da primeira década do Século XXI.
Sem comentários:
Enviar um comentário