Mafalda impacientava-se. A prometida coluna para o planalto dos Dembos tardava em partir – problemas logísticos e de devida preparação política e cristã dum batalhão composto por montanheses embrutecidos de Quintanilha, lá de trás dos montes, complicavam os horários de defesa da Pátria. Ou talvez o Governador temesse as consequências de enviar uma filha de boas famílias, descendente de Teodorico dos Suevos!, e para mais com contactos com várias afilhadas do Senhor Presidente do Conselho, para os confins da civilização, onde poderia ser fácil presa dos apetites animalescos de gentes nada cristãs e, acima de tudo, pretas.
Fosse como fosse, o primo Manuel de Benevides encontrava sempre uma qualquer desculpa razoável, como a de ser necessário habituar os homens da escolta ao uso de sapatos. Entretanto ia passeando Mafalda pelos bailes e recepções, disfarçando cada vez menos os desejos lúbricos que o assaltavam.
- “Ó prima”, dizia-lhe amiúde por entre tentativas dançarinas de lhe sentir as voluptuosas curvas, “fique antes em Luanda, onde há bailes com caviar e água canalizada! Porquê essa fixação em percorrer picadas infindas atrás de um oficialeco transformado em missionário com sonhos ímpios de fraternidade universal que põem em causa o Estatuto do Indigenato?” Pois que notícias do inesperado entusiasmo cristão de Gonçalo tinham sido transmitidas pelos serviços da PIDE (Parca Inteligência de Devassa Nacional).
Mafalda, com algum custo, porque é sempre difícil resistir a mil anos de criação genética que a todo o momento lhe dizia que aos primos é que se deve conhecer biblicamente, recusava os seus avanços agarrando-se à imagem máscula do seu Gonçalo. Manuel amuava como se toda a linhagem tivesse sido ferida.
- “Tudo isto por alguém cujos antepassados nem lutaram em Aljubarrota e nem sequer é da família”, dizia, enquanto desviava o olhar para o lustro d’ébano das empregaditas ovimbumdo nas suas farditas francesas.
Debaixo deste constante cerco, o que valia a Mafalda, além das memórias e fantasias com Gonçalo, era a companhia e o apoio sempre terno de Cilinha Damião, socialite de velhas famílias coloniais com alguma, pouca, mancha de crioulagem. Era Cilinha quem amparava os seus choros, dos mais histéricos aos mais nostálgicos. Era Cilinha quem lhe ouvia as confissões, desejos e temores mais íntimos. Era Cilinha quem lhe dava o perdão pelos seus pecados e a força para persistir neles. Tal como a muito querida madre Joana da Cruz do Cristo Impaciente, do seu velho e querido Ramalhão.
- “Cilinha, Cilinha...” dizia Mafalda, “se não fosses tu”, pois já se tratavam por tu tão grande a intimidade, “nem sei o que faria de tão desesperada que ando!”
A isto Cilinha respondia com o seu sorriso doce de lábios humedecidos:
- “Ó meu amor, não podes deixar-te ir abaixo! Olha que a vida tem mais do que Gonçalos!”
E essa palavra amor, naqueles lábios tão amigos, fazia nela estremecer todo um passado que julgava já esquecido. Voltaria esse passado a ditar as vicissitudes do presente? Muito provavelmente.
* * *
Gonçalo estiolava no seu cativeiro kikongo. O ar quente e bafiento da palhota em que o encerraram, onde se amontoavam moscas e mosquitos entre outros vermes menos alados mas igualmente vorazes; o frio das noite no planalto, onde ao longe se podiam ouvir congressos uivantes de selvagens bestas em redor do rio Úcua; o suor catingoso dos seus carcereiros, mesclado com o cheiro de roupa usada até à exaustão molecular, que bem lhe fazia lembrar a excursão a Odivelas para ver os pobres durante as cheias, organizada pelas Conferências de S. Vicente de Paula – tudo isto pregava Gonçalo ao tormento do seu corpo, essa carne prisioneira dos reveses do Império, ao mesmo tempo que o elevava para as luminosas paisagens da beatitude.
África era a sua Cruz, percebia-o agora com a limpidez de quem viu a virgem santíssima e imaculada num golpe de sol.
- “Quão errado estava!” Dizia agora para consigo na purificação malárica do seu arrebatamento exclamativo, “Não será na carne, na enganadora carne, que encontrarei a paz!” Não seria, portanto, Mafalda ou qualquer outra mulher de ocasião, quando ocasião havia, que o haveriam de desviar do seu verdadeiro fado e destino – o de ser uma espécie de São Francisco Xavier dos pretos. E, como ele, morrer missionário. Com esse martírio salvando da tenebrosa impiedade as legiões selvagens do Portugal d’além mar, pensava, ao mesmo tempo que desfiava, com voz trémula mas inquebrantável, a litania dos santos e outras ladainhas de pai-nossos, salvé-rainhas e avé-marias. Longe, cada vez mais longe, não só do amor terreno, como do amor guerreiro à pátria.
A transfiguração de Gonçalo preocupava os seus captores. Não o queriam imprestável para os seus interesses libertadores. Depois de aturadas conversações com o adido soviético que, através do Zaire, fazia a ligação à solidária Moscovo (há muito que os evangelizadores americanos tinham já esgotado a sua ajuda contra o Luso-Papismo), decidiram-se pela terapia de choque, como meio de trazer Gonçalo de volta à realidade das coisas tangíveis. Depois de muitos banhos de água fria e suja, entrecortados com outros tantos de água quente e óleo de rosas (sempre difícil de arranjar em qualquer quilombo!), de tentativas de sedução por pelo menos metade das camaradas do batalhão feminino (dispostas aos mais aviltantes sacrifícios pela libertação nacional e mandioca a preço acessível), de recitações, penosas!, dos discursos do senhor general Kúalza de Arrivalga, comandante-em-chefe do PIDE (Projecto Irredentista de Defesa contra o Estalinismo) em Angola, com o intuito de retornar Gonçalo ao redil ideológico dos seus e assim ter preso um inimigo normal, nada parecia funcionar. Só restava atirar-lhe com o MachuN’gu. Basto colosso de portentosa masculinidade, todas as gerações nascia um, dizia-se por aqueles lados, dotado tanto de líbido indiferenciada como fraco de discernimento.
Entra assim o maciço e sempre excitado semi-bípede na palhota e logo dirige a sua raiva viril contra o suado, olheirento, febril e esquálido Gonçalo. Que mal tuge nem muge. Que mal sente as poderosas garras que o viram e reviram, expondo tudo o que haveria a expor, puxando e repuxando todo o que de manuseável pode num corpo existir. Que mal dá pelo hálito fétido e pesado de inconfessáveis, os dotes linguísticos de MachuN’gu não dariam para tanto, perversões. Que nem repara na boca de inchados lábios, donde exala um babado e arfante intento obsessivo, que lhe percorre a pele. Com língua de serradura, como os gatos. Com dentes, tão escuros como a noite e as gentes desta terra, que tudo mordem até ao sangue escorrer vermelho vivo. Única cor luzente numa imensa caverna. E porque das trevas, diz-se, nasce a luz, Gonçalo, na transfiguração que tem sido a sua, já não se crê neste mundo. Tudo o que sente é um turbilhão distante, como se terríveis anjos o transportassem até à indescritível presença. Eis então que a vingança de todas as Áfricas lhe penetra o ser. Mesmo que pela cloaca. E Gonçalo alcança revelações sublimes, tanto quanto penetrantes. E sente o seu interior prenhe de calor divino, que lhe queima as entranhas e o insta ainda mais a ser o profeta nestes tempos.
- “Não mais sou Gonçalo”, sabe intimamente. “Sou Bernardo”, nasce o grito das suas mais recalcadas memórias, “Bernardo das Aflições Interiores!”, porque a palavra de deus queima como magma líquido os que crêem tê-la escutado. Mesmo que a partir do baixo-ventre. E berra “África!!” no paroxismo dos seus deleites e agruras.
Manteria Gonçalo os seus intentos de conversão ao rebanho papal de todo o cafreal? Persistiria na sua ressurreição como Bernardo das Aflições Interiores? Esqueceria MachuN’gu o seu branquinho rezador? Muito provavelmente.
* * *
Manuel de Benevides, secreta mas activamente inspector do PIDE (Painel Intra-departamental de Doutrina Estratégica), há muito que desconfiava das convicções e acções pouco lusitanas de Cilinha. Tinha-a posto sob vigilância permanente, debaixo do olhar sempre ávido e salivar do agente operacional Bacalhau e do seu auxiliar, o Faneca, conhecidos no milieu como a Brigada do Pescado. Infelizmente as qualidades policiais de ambos deixavam bastante a desejar.
- “Mas, ó sôr’eng’nhero”, desculpava-se o agente Bacalhau, “o raio da cabrita é escorredia como o raio duma lampreia”, usando e abusando das metáforas piscícolas, como convinha ao seu nome e natureza. Da facto, Bacalhau e Faneca mais depressa se escapuliam para uma sardinhada, e com sardinha fresca vinda da metrópole! (que os seus contactos no submundo do tráfico clandestino de peixe em Luanda permitiam), do que persistiam nos seus deveres de defesa da Raça e do Império.
Conseguia assim Cilinha, com a perfeita cobertura de não aparentar ser, para o olho desarmado pelo seu corpo esguio mas bamboleante, mais do que uma fútil gazela de famílias arrivistas a tentar branquear-se com o sangue velho de séculos da metrópole, continuar alegre e empenhadamente a jogar o seu perigoso jogo de três convicções proscritas e incompatíveis: a defesa acérrima da destruição do imperialismo fascista e capitalista português pela instauração da ditadura do proletariado; a exaltação telúrica da sua negritude, esquecendo todos as células de pobres e descalços beirões e alentejanos que nela pululam em prol dos congos do seu sangue; a luta visceral pelo matriarcado universal e por sáficas paixões, livres da dominação dos falos e da marca impura dos seus fluidos seminais, contra a verdade primeira do seu lunar sangue derramado. Ou não fosse ela secretária-geral do PIDE (Politburo Indígena Desconstrucionista Eventual).
Mafalda e Cilinha mal se largavam. Fosse nas festas e cocktails, onde representavam a dupla distante e zombeteira de todos os pretendentes, e eram muitos!, mesmo que só para dançar. Fosse em longos passeios pela marginal de Luanda, logo expandidos em excursões a solitárias praias. Areais onde descobriam os recantos das suas formas, os anseios das suas paixões, o fulgor dos seus calores.
E Mafalda dava a pensar em si mesma como Matilde, com vagas memórias de hábitos despidos, corpos femininos nus ostentando apenas simples cruzes de madeira, de coxas apertadas e rezas peito a peito. “Ah!”, pensava, “Os belos tempos do Ramalhão, da madre Joana e do PIDE (Programa Interno de Desentediamento Escolar)”. Cilinha fazia então, com todo o seu esplendor, a sua lânguida língua e doce boca, os seus dedos de delicado mas insistente toque, que Mafalda (ou seria já somente e apenas Matilde?) sentisse que o vértice do seu ser coincidia com a cunha do seu corpo. Conseguia assim Cilinha que Mafalda esquecesse Gonçalo, ou, pelo menos, pensasse nele somente como uma ausência à qual se habituava, como se a vida fosse habitual com a sua ausência.
Conseguiria Cilinha converter Mafalda aos seus deleites? E os planos para fazer dela a sua agente subversiva junto de seu primo Manuel e do Governador teriam bom fundamento? Aguentaria Cilinha manter o seu íntimo em paz, sem entrar numa guerra civil entre as suas convicções marxistas-leninistas (terceiro-mundistas), black power (tendência afro-nativista e não americano-guetizada) e feministas radicais (de separatismo lésbico)? O que lhe valia é que quando a revolução viesse, como haveria inexoravelmente de vir, seria ela a mandar. Muito provavelmente.
Fosse como fosse, o primo Manuel de Benevides encontrava sempre uma qualquer desculpa razoável, como a de ser necessário habituar os homens da escolta ao uso de sapatos. Entretanto ia passeando Mafalda pelos bailes e recepções, disfarçando cada vez menos os desejos lúbricos que o assaltavam.
- “Ó prima”, dizia-lhe amiúde por entre tentativas dançarinas de lhe sentir as voluptuosas curvas, “fique antes em Luanda, onde há bailes com caviar e água canalizada! Porquê essa fixação em percorrer picadas infindas atrás de um oficialeco transformado em missionário com sonhos ímpios de fraternidade universal que põem em causa o Estatuto do Indigenato?” Pois que notícias do inesperado entusiasmo cristão de Gonçalo tinham sido transmitidas pelos serviços da PIDE (Parca Inteligência de Devassa Nacional).
Mafalda, com algum custo, porque é sempre difícil resistir a mil anos de criação genética que a todo o momento lhe dizia que aos primos é que se deve conhecer biblicamente, recusava os seus avanços agarrando-se à imagem máscula do seu Gonçalo. Manuel amuava como se toda a linhagem tivesse sido ferida.
- “Tudo isto por alguém cujos antepassados nem lutaram em Aljubarrota e nem sequer é da família”, dizia, enquanto desviava o olhar para o lustro d’ébano das empregaditas ovimbumdo nas suas farditas francesas.
Debaixo deste constante cerco, o que valia a Mafalda, além das memórias e fantasias com Gonçalo, era a companhia e o apoio sempre terno de Cilinha Damião, socialite de velhas famílias coloniais com alguma, pouca, mancha de crioulagem. Era Cilinha quem amparava os seus choros, dos mais histéricos aos mais nostálgicos. Era Cilinha quem lhe ouvia as confissões, desejos e temores mais íntimos. Era Cilinha quem lhe dava o perdão pelos seus pecados e a força para persistir neles. Tal como a muito querida madre Joana da Cruz do Cristo Impaciente, do seu velho e querido Ramalhão.
- “Cilinha, Cilinha...” dizia Mafalda, “se não fosses tu”, pois já se tratavam por tu tão grande a intimidade, “nem sei o que faria de tão desesperada que ando!”
A isto Cilinha respondia com o seu sorriso doce de lábios humedecidos:
- “Ó meu amor, não podes deixar-te ir abaixo! Olha que a vida tem mais do que Gonçalos!”
E essa palavra amor, naqueles lábios tão amigos, fazia nela estremecer todo um passado que julgava já esquecido. Voltaria esse passado a ditar as vicissitudes do presente? Muito provavelmente.
* * *
Gonçalo estiolava no seu cativeiro kikongo. O ar quente e bafiento da palhota em que o encerraram, onde se amontoavam moscas e mosquitos entre outros vermes menos alados mas igualmente vorazes; o frio das noite no planalto, onde ao longe se podiam ouvir congressos uivantes de selvagens bestas em redor do rio Úcua; o suor catingoso dos seus carcereiros, mesclado com o cheiro de roupa usada até à exaustão molecular, que bem lhe fazia lembrar a excursão a Odivelas para ver os pobres durante as cheias, organizada pelas Conferências de S. Vicente de Paula – tudo isto pregava Gonçalo ao tormento do seu corpo, essa carne prisioneira dos reveses do Império, ao mesmo tempo que o elevava para as luminosas paisagens da beatitude.
África era a sua Cruz, percebia-o agora com a limpidez de quem viu a virgem santíssima e imaculada num golpe de sol.
- “Quão errado estava!” Dizia agora para consigo na purificação malárica do seu arrebatamento exclamativo, “Não será na carne, na enganadora carne, que encontrarei a paz!” Não seria, portanto, Mafalda ou qualquer outra mulher de ocasião, quando ocasião havia, que o haveriam de desviar do seu verdadeiro fado e destino – o de ser uma espécie de São Francisco Xavier dos pretos. E, como ele, morrer missionário. Com esse martírio salvando da tenebrosa impiedade as legiões selvagens do Portugal d’além mar, pensava, ao mesmo tempo que desfiava, com voz trémula mas inquebrantável, a litania dos santos e outras ladainhas de pai-nossos, salvé-rainhas e avé-marias. Longe, cada vez mais longe, não só do amor terreno, como do amor guerreiro à pátria.
A transfiguração de Gonçalo preocupava os seus captores. Não o queriam imprestável para os seus interesses libertadores. Depois de aturadas conversações com o adido soviético que, através do Zaire, fazia a ligação à solidária Moscovo (há muito que os evangelizadores americanos tinham já esgotado a sua ajuda contra o Luso-Papismo), decidiram-se pela terapia de choque, como meio de trazer Gonçalo de volta à realidade das coisas tangíveis. Depois de muitos banhos de água fria e suja, entrecortados com outros tantos de água quente e óleo de rosas (sempre difícil de arranjar em qualquer quilombo!), de tentativas de sedução por pelo menos metade das camaradas do batalhão feminino (dispostas aos mais aviltantes sacrifícios pela libertação nacional e mandioca a preço acessível), de recitações, penosas!, dos discursos do senhor general Kúalza de Arrivalga, comandante-em-chefe do PIDE (Projecto Irredentista de Defesa contra o Estalinismo) em Angola, com o intuito de retornar Gonçalo ao redil ideológico dos seus e assim ter preso um inimigo normal, nada parecia funcionar. Só restava atirar-lhe com o MachuN’gu. Basto colosso de portentosa masculinidade, todas as gerações nascia um, dizia-se por aqueles lados, dotado tanto de líbido indiferenciada como fraco de discernimento.
Entra assim o maciço e sempre excitado semi-bípede na palhota e logo dirige a sua raiva viril contra o suado, olheirento, febril e esquálido Gonçalo. Que mal tuge nem muge. Que mal sente as poderosas garras que o viram e reviram, expondo tudo o que haveria a expor, puxando e repuxando todo o que de manuseável pode num corpo existir. Que mal dá pelo hálito fétido e pesado de inconfessáveis, os dotes linguísticos de MachuN’gu não dariam para tanto, perversões. Que nem repara na boca de inchados lábios, donde exala um babado e arfante intento obsessivo, que lhe percorre a pele. Com língua de serradura, como os gatos. Com dentes, tão escuros como a noite e as gentes desta terra, que tudo mordem até ao sangue escorrer vermelho vivo. Única cor luzente numa imensa caverna. E porque das trevas, diz-se, nasce a luz, Gonçalo, na transfiguração que tem sido a sua, já não se crê neste mundo. Tudo o que sente é um turbilhão distante, como se terríveis anjos o transportassem até à indescritível presença. Eis então que a vingança de todas as Áfricas lhe penetra o ser. Mesmo que pela cloaca. E Gonçalo alcança revelações sublimes, tanto quanto penetrantes. E sente o seu interior prenhe de calor divino, que lhe queima as entranhas e o insta ainda mais a ser o profeta nestes tempos.
- “Não mais sou Gonçalo”, sabe intimamente. “Sou Bernardo”, nasce o grito das suas mais recalcadas memórias, “Bernardo das Aflições Interiores!”, porque a palavra de deus queima como magma líquido os que crêem tê-la escutado. Mesmo que a partir do baixo-ventre. E berra “África!!” no paroxismo dos seus deleites e agruras.
Manteria Gonçalo os seus intentos de conversão ao rebanho papal de todo o cafreal? Persistiria na sua ressurreição como Bernardo das Aflições Interiores? Esqueceria MachuN’gu o seu branquinho rezador? Muito provavelmente.
* * *
Manuel de Benevides, secreta mas activamente inspector do PIDE (Painel Intra-departamental de Doutrina Estratégica), há muito que desconfiava das convicções e acções pouco lusitanas de Cilinha. Tinha-a posto sob vigilância permanente, debaixo do olhar sempre ávido e salivar do agente operacional Bacalhau e do seu auxiliar, o Faneca, conhecidos no milieu como a Brigada do Pescado. Infelizmente as qualidades policiais de ambos deixavam bastante a desejar.
- “Mas, ó sôr’eng’nhero”, desculpava-se o agente Bacalhau, “o raio da cabrita é escorredia como o raio duma lampreia”, usando e abusando das metáforas piscícolas, como convinha ao seu nome e natureza. Da facto, Bacalhau e Faneca mais depressa se escapuliam para uma sardinhada, e com sardinha fresca vinda da metrópole! (que os seus contactos no submundo do tráfico clandestino de peixe em Luanda permitiam), do que persistiam nos seus deveres de defesa da Raça e do Império.
Conseguia assim Cilinha, com a perfeita cobertura de não aparentar ser, para o olho desarmado pelo seu corpo esguio mas bamboleante, mais do que uma fútil gazela de famílias arrivistas a tentar branquear-se com o sangue velho de séculos da metrópole, continuar alegre e empenhadamente a jogar o seu perigoso jogo de três convicções proscritas e incompatíveis: a defesa acérrima da destruição do imperialismo fascista e capitalista português pela instauração da ditadura do proletariado; a exaltação telúrica da sua negritude, esquecendo todos as células de pobres e descalços beirões e alentejanos que nela pululam em prol dos congos do seu sangue; a luta visceral pelo matriarcado universal e por sáficas paixões, livres da dominação dos falos e da marca impura dos seus fluidos seminais, contra a verdade primeira do seu lunar sangue derramado. Ou não fosse ela secretária-geral do PIDE (Politburo Indígena Desconstrucionista Eventual).
Mafalda e Cilinha mal se largavam. Fosse nas festas e cocktails, onde representavam a dupla distante e zombeteira de todos os pretendentes, e eram muitos!, mesmo que só para dançar. Fosse em longos passeios pela marginal de Luanda, logo expandidos em excursões a solitárias praias. Areais onde descobriam os recantos das suas formas, os anseios das suas paixões, o fulgor dos seus calores.
E Mafalda dava a pensar em si mesma como Matilde, com vagas memórias de hábitos despidos, corpos femininos nus ostentando apenas simples cruzes de madeira, de coxas apertadas e rezas peito a peito. “Ah!”, pensava, “Os belos tempos do Ramalhão, da madre Joana e do PIDE (Programa Interno de Desentediamento Escolar)”. Cilinha fazia então, com todo o seu esplendor, a sua lânguida língua e doce boca, os seus dedos de delicado mas insistente toque, que Mafalda (ou seria já somente e apenas Matilde?) sentisse que o vértice do seu ser coincidia com a cunha do seu corpo. Conseguia assim Cilinha que Mafalda esquecesse Gonçalo, ou, pelo menos, pensasse nele somente como uma ausência à qual se habituava, como se a vida fosse habitual com a sua ausência.
Conseguiria Cilinha converter Mafalda aos seus deleites? E os planos para fazer dela a sua agente subversiva junto de seu primo Manuel e do Governador teriam bom fundamento? Aguentaria Cilinha manter o seu íntimo em paz, sem entrar numa guerra civil entre as suas convicções marxistas-leninistas (terceiro-mundistas), black power (tendência afro-nativista e não americano-guetizada) e feministas radicais (de separatismo lésbico)? O que lhe valia é que quando a revolução viesse, como haveria inexoravelmente de vir, seria ela a mandar. Muito provavelmente.
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