segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

II

O Destino, por vezes, hesita perante a complexidade pictórica da tapeçaria das Parcas. Os fios, pacientemente manipulados e tingidos, cruzam-se na teia da vida criando cenas bucólicas e galantes, tempestades, duetos amorosos e odiosos concertos de salteadores e bruxas. Mafalda acordou perturbada, mas mais perturbada acordaria se adivinhasse os cortes bruscos da tesoura e os nós apertados que, em breve, a estrangulariam – ou talvez não...
O sol bate a pique na Beira. Felizmente, Gonçalo está em Luanda e usa um quépi. Mas não por muito tempo. Não há paz nas ruas, nem tranquilidade nos espíritos dos Bembos, algures no sertão angolano. Com tristeza, mas também com alegria, Gonçalo deslaça os braços de Rainha Jinga – a vedeta transformista do Copacabana – e, como bom soldado e bom português, obedece à chamada e integra a caravana que abandona a cidade. No horizonte, a coluna de pó marca o avanço da civilização cristã e portuguesa... E ainda bem, porque três bivaques, dois rios e uma praga de gafanhotos depois, Gonçalo chega – finalmente – à baixa de Silva Porto Ferreira. Ao contrário do que imaginava, não foi recebido pelo orfeão do Colégio dos Jesuítas, não foram lidos poemas alusivos à linha do Tua ou às amendoeiras do Algarve, nem sequer foi convidado para jantar em casa do chefe de posto. Em vez disso, foi recebido por uma saraivada de zaragatoas uivantes:
- Irra! Já é demais! Vem um homem de Cascais para ISTO!? Que não se jogue bridge ou voltarete ainda vá, mas que se receba uma pessoa DESTA maneira! – reclamava Gonçalo a caminho da igreja precariamente fortificada.
Enquanto ao fundo, entre as árvores, Gonçalo redescobre o poder da oração, no canto inferior esquerdo do Arraiolos, o leitor poderá surpreender Mafalda no seu boudoir. Numa mão segura a pena, noutra uma faca para abrir as cartas que não chegam de Lourenço Marques. Por breves instantes, considera pôr fim à vida mas a lavagem ao estômago é sadicamente dolorosa e no Hospital de Cascais ensaia-se uma intervenção militar no Iraque. MI-LI-TAR... é com um frémito sensual que a ponta da língua de Mafalda toca os alvéolos.
Almiro, escondido entre a hera, observa Mafalda através da janela de cristal da Boémia. Herdeiro universal de um taxista português em Genebra (lembram-se?), Almiro arquitectou um plano maquiavélico de contornos chabrolianos, mas de matizes rohmerianos. O caderno de encargos inclui a demonstração científica da imoralidade das classes abastadas; a aquisição do solar dos Cepúlvedas (e a sua posterior reconversão num hotel de charme) e a sedução da ingénua Mafalda. A rêverie de Almiro foi sonoramente interrompida pela chegada de um descapotável vermelho sangue. As copas dos ciprestes ondularam e as camélias tísicas desmaiaram no chão quando os sapatos Ferragamo de Beatriz Cepúlveda tocaram o saibro ancestral da casa de família de Mafalda de Borgonha. Almiro cravou os olhos no peito arfante de Beatriz. Ele recordou-lhe imediatamente o perfil vigoroso de Thomaz de Biscaia e noites apaixonadas de insónia cristina. Só um Apolo de Belvedere e um São José de azulejos assistiram ao coup de foudre.
De novo, o Fado dobou apressadamente o fio de lã e Beatriz tomou Almiro por íntimo dos Borgonha e Mafalda, ao vê-los entrar em casa, partiu do princípio de que Almiro era um amigo de Gonçalo ou um personal trainer desvalido que Beatriz acolhera sob o dossel de chintz da cama Luís XVI. Na ausência da mãe, coube a Mafalda receber Beatriz Cepúlveda na delapidada sala de estar da família Borgonha. Todavia, o ambiente revelou-se incómodo e insalubre. Os olhares concupiscentes de Almiro e as palavras enviesadas de Beatriz sugeriam ligações perigosas. Tudo era equívoco e Mafalda temia não entender todo o sentido e o pleno alcance dos vocábulos proferidos: como se arrependia de não ter frequentado o Liceu Francês!... Beatriz evocou a antiga amizade entre os dois clãs e mostrando-se conhecedora dos problemas financeiros dos Borgonha, ofereceu-se, solidária, para comprar a casa onde Mafalda nascera e vivera toda a vida. A intenção de Beatriz era oferecer a casa a Gonçalo e à mulher com quem ele viesse a casar. Mafalda estremeceu (o ferro de engomar estaria ligado?), pois ainda acalentava a esperança de ser ela a predestinada. Beatriz, ignorante do drama ingente da rapariga, decantava saudades do filho degustando o inesquecível sabor a África do Baile do Governador!
Entretanto, em Angola, Gonçalo, graças ao auxílio do PIDE (Programa Internacional de Desenvolvimento Ecológico), descobriu as causas da revolta dos Bembos. Após a leitura não enquadrada da constituição apostólica Munificentissimus Deus, instigada por missionários protestantes norte-americanos, os nativos recusaram-se a aceitar o dogma da Assunção de Maria e, perante a indisponibilidade do bispo de Quelimane para o diálogo ecuménico, atacaram a cidade branca e os colonos portugueses. Sentado à mesa conciliar, Gonçalo fazia paciências e cogitava:
Nas próximas páginas, iremos com certeza bordar as novas tapeçarias de Pastrana! Muito provavelmente.

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