“Kanimanmbooooouuuuhhhh.... oooohhhhhuuuuuu
Kani Mambo! Kani Mambo! Kani Mambo! (coro)
Kanimambooo, só contigooo eu consigo entender o amor,
Kani Mambo! Kani Mambo! Kani Mambo! (coro)
Kanimambooo, preso aos laçooos dos teus braçooos a vida melhora...
É por isso quando tu sorris que o feitiço me faz tão feliz
E me obriga a que eu diga
Kanimamboooo como o negrooo diiizzz (...)
Tudo é kanimamboooo.... oooohhhhhuuuuu”
João Maria Tudela, 1957
Chegaram a Luanda na madrugada do 4 de Fevereiro. Da amurada do navio viam-se ao longe as luzes da cidade. Era uma África muito diferente daquela que sempre imaginara. Por mais que tentasse Mafalda não conseguia ouvir batuques, nem existiam fogueiras na praia, nem coros de negras repolhudas e de bundas opulentas, sorrindo envoltas em panos de cores extravagantes. Não havia palhotas, nem sequer se sentia o rugido tonitruante dos leões com o cio. Em vez de uma cacofonia de pássaros pousados no escuro da selva, o grito das aves reduzia-se ao frio assobio das gaivotas oportunistas que caçavam o peixe miúdo em redor do paquete. Com intervalos regulares, a brisa que cortava o ar quente trazia-lhe um vago ruído de carros e de gentes, como se por detrás daquela madrugada houvesse uma metrópole fervilhante sob o calor dos trópicos. A selva, a savana, os leões, os leopardos e os elefantes, tudo isso ficava, ainda, muito longe.
À medida que se aproximavam percebeu com surpresa que era noite de Festa. Ia acordando de uma espécie de torpor sonolento que parecia tê-la assaltado durante a viagem. Por toda a cidade de São Paulo de Luanda silvavam explosões e um estranho fogo de artifício. Não percebia porquê tanta agitação. Será que a sua amiga Melita, afilhada do senhor presidente do conselho, tinha prevenido o senhor governador da sua chegada a esta linda província ultramarina!? Teria direito a tapete vermelho assim que saísse do cais?! Dar-lhe-iam logo um Logan com água Castelo? Estava cansada da longa viagem no Ponta de Sagres; farta do Vermute do bar e de ouvir os piropos tauromáquicos dos soldados, sempre que vestia o seu calção de pirata vermelho que comprara numa ida a Londres. Até os oficiais simulavam touradas à sua passagem, rindo alcoolizados, ao mesmo tempo que colocavam o punho à frente da testa com o polegar e o mindinho levantados. Ela passava impávida por entre estas crianças grandes, de fardas verdes, que pareciam querer esquecer que iam lutar pela pátria, salvar-nos da barbárie e do comunismo a que até os americanos nos queriam entregar.
Lá fora, o estardalhaço e o ruído das explosões eram magníficos. Ficou surpreendida e feliz ao ver o céu cobrir-se de pequeninas estrelas de mil cores que se desfaziam ao cair sobre os edifícios e as árvores. Imaginou-se logo deitada numa tolha de piquenique, sobre a areia quente de uma praia tropical, nos braços fortes de Gonçalo, sentindo-o recender um cheiro másculo a suor recente, os dois olhando a imensidão da via láctea, tolhidos apenas por este nova explosão de pigmentos e cristais, como uma chuva de felicidade.
Mafalda, absorta no seu sonho, nada percebia. Lentamente, de forma irreflectida, a sua língua procurava humedecer os beiços, fazendo movimentos circulares. Começavam a assomar uns estranhos calores e imaginava as mãos fortes de Gonçalo a despir-lhe devagarinho os botões da blusa de seda que haviam comprado juntos na Loja das Meias. Desde o capítulo anterior que Mafalda se sentia estranha. Até passara por uma nova crise esquizofrénica em que mudara de nome e se entregara a um estranho e enérgico grumete cuja língua conseguia coçar a cova do próprio queixo, ou tudo isto teria sido culpa da pena apressada do novelista e dos litros de vermute que havia bebido desde a sua última saída a terra no já longínquo Porto do Mindelo? Mesmo com todos os erros prováveis que o estilo e a gramática, sempre generosos, esquecem, havia um mistério que emergia enorme dentro de si, abrindo-lhe as portas para novas experiências e para novas percepções. O calor, o ar doce e perfumado despertavam-lhe um fogo adormecido que queimava como lava fumegante.
África! A Mãe-África! Essa leoa de sentimentos e paixões inundava-lhe os sentidos, desregrava-a, aquecia-a, fervia-lhe o sangue e os fluidos. Sentia-se culpada por ter traído Gonçalo com o grumete, mas já tinha muitos anos de missa e de confissão. Sabia que ia sofrer um pouco, que a sua consciência a iria perturbar nos momentos de desalento, mas tudo se iria compor. Se Nossa Senhora era capaz de alcançar a conversão da Rússia, com certeza também a poderia perdoar.
De repente, gritos cortaram o ar.
- Foda-se! Caralho! Foda-se! Os turras!, começaram uns soldados a gritar.
Regressou espaventada do seu mundo de fantasia. Vindo do nada um dos foguetes parecia dirigir-se contra o paquete. Já não entendia o que se passava. Todos estavam assustados e tentavam correr para fora do convés. Os soldados vociferavam já injúrias a um deus desconhecido e mau que os espreitaria por detrás do capim, em cada picada, em cada palhota. Mafalda ainda de pé e quase sozinha no meio das cadeiras tombadas olhava maravilhada este milagre de um foguete que se perdera na noite escura, passando junto a si, deixando um rasto de luz que só os seus olhos viam. Era um acontecimento extraordinário e pensou consigo mesma que deveria ser um bom presságio.
Novamente foi obrigada a descer para longe da poesia. Um dos soldados atirara-se contra ela, caindo inteiro sobre o seu corpo, fazendo-a tombar no deck húmido. Com os estremeções do navio os corpos enlaçaram-se e deslaçaram-se. Mas o soldado ainda conseguiu beliscar-lhe a coxa acrescentando:
- Boa chicha, ó garina!
Não compreendia nada. A realidade chocava contra o seu ser como um bólide desgovernado no autódromo do Estoril.
- Chicha!? O que era aquilo?... Onde estava?... Não eu não me chamo Matilde, pensou.
Olhando de frente reconheceu claramente o rosto do soldado Zé. Lembrava-se de o ter ouvido cantar o fado durante a viagem, quando visitou o convés da 3ª classe. Morava na última barraquinha existente na Rua do Capelão, na Mouraria, um local apenas frequentado por mulheres de má sorte, fadistas, faquistas, intelectuais pobres, marialvas sifilíticos e mesários infelizes da Irmandade do Senhor dos Passos da Graça que até o anel de brasão tinham posto no “Prego” de um judeu. Zé tinha uma mãe alcoólica, um irmão aleijadinho e uma irmãzinha anã. Não servindo para mais nada, sendo Portugal um país pequeno e com convencionais perversões sexuais, a anã vendia aguardente falsificada e traficava liamba por conta de uns pretos recentemente chegados para as obras da nova ponte Salazar. Era o sustento da família. Com tanto empreendedorismo, se estivesse estabelecida em Paris de França, já seria dona de uma casa de prazer, onde receberia psicanalistas da Rue de Lille e diplomatas do 16ème arroundissement.
Apesar do ar malandro e do belo sorriso já comido pelas cáries, Mafalda gritou-lhe autoritária:
- Saia daqui seu ordinário, ou chamo o capitão!
- Olha! Olha! C’a gaja fala bem c’o m’uma varina.
Tens boa goela, ó garina! Dá-me um chocho... váá láá?!... Nem vias o róckette que aí vinha... Tavas a pensar no Ifigénia, não?! E eu aqui sozinho, disprazado... Ó carita laroca, eu vi tudo...
A boca dele ia-se aproximando perigosamente, por entre os avanços e recuos do doce balançar do navio... Sentia-lhe o hálito a vinho do Cartaxo e a Ginjinha... Parecia que estava entontecida e num fadinho da Hermínia Silva...
Era demasiada luta de classes para o seu gosto. Pior que um desses poemas modernos, onde apenas se fala das dores do eu e de nomes de medicamentos para a neurastenia e nem se consulta a virgem de fátima. Num salto, Mafalda afastou-se horrorizada, como um cavalo espantado. Tinha voltado à realidade. Não, não era Matilde. Há muito que não tinha dessas crises. Desde os anos do Ramalhão. Caminhou apressadamente e de forma vigorosa para a 1ª classe, o corpo dava ainda estranhas sacudidelas. Eram as sequelas de 1000 anos de endogamia e de ociosidade familiar. Toda a sua vida tinha aprendido a mais pura gentlemanship com o mordomo de seu pai. Não era agora que ia perder o controlo. Ela era uma Borgonha, neta de Fuas, Ordonhos, Egas e Mendos. Tinha vindo para salvar Gonçalo, o homem da sua vida. E sabia bem que apenas se poderia dar com pessoas que tivessem mais de cinco nomes, que usassem pelo menos dois apelidos e uma partícula, que fossem ainda vagamente seus parentes e que nunca dissessem lábios, nem sequer em contexto ginecológico e mesmo sendo médicos. Os restantes acontecimentos mais embrulhados eram apenas momentos acessórios, impulsos animais que depois mortificava com silícios e com açoites nalgais quando estava a sós com Gonçalo. Sentiu de novo a tensão e o calor a subir-lhe pelos peitos afogueados, concentrando-se nas pequenas elevações rosadas dos seus mamilos. O coração bateu mais depressa. Montesquieu já tinha falado nesta estranha influência do clima sobre as civilizações e até tinha lido umas coisas sobre o assunto nos apontamentos de estratégia militar de um general que era primo da Carminho Arriaga, mas nunca sentira tal coisa, apenas nesta atribulada chegada a Luanda.
Respirou fundo para se controlar novamente. Percebia agora que tinha chegado a África. Tudo aqui era aventura, neste continente negro e misterioso, este buraco quente e húmido onde a razão desaparecia e todas as paixões se exaltavam. Foi para o camarote tomar um duche e aspergir-se com Channel 5. Porém, quanto mais se aproximavam de terra, mais esta parecia emanar um cheiro acre e excitante. O seu amor não devia andar longe. A sua essência já estava no ar. Era-lhe trazida pelo cheiro dos embondeiros, pelo bater de asas nervoso dos pássaros coloridos da selva e pelas impalas e gazelas que, fugindo assustadas dos predadores, se colocavam tão velozes como o vento. Sentou-se à frente do toucador e penteou longamente os seus belos cabelos. Imaginou pores-do-sol imensos, sob um céu que parecia nunca acabar, numa sucessiva mancha de diferentes tons amarelos e laranjas, gradualmente desfalecidos, entrando por uma noite escura que lentamente se tingia de negro. Mas agora tinha que acordar, deixar as metáforas de mau gosto e pensar em como conseguir organizar uma expedição para resgatar Gonçalo das mãos dos terroristas. O navio estava quase a atracar. O primo Benevides, secretário-geral do governador da colónia, esperava-a com o seu motorista.
Os primeiros a sair do Ponta de Sagres foram os soldados, que eram esperados por longas filas de camiões verdes. Rapidamente iriam desaparecer engolidos pela poeira, pelo calor e pelos urros dos sargentos. Depois desembarcaram algumas famílias de mãos calosas, cujas velhas, de semblante cerrado, se vestiam de negro e traziam nos bolsos terços de Nossa Senhora de Fátima. Os fatos escuros, os cestos de verga com cebolas e chouriços, e os rostos tisnados do sol eram-lhe familiares. O ciciar fê-la perceber que vinham da Beira, de Vale de Gatos, e que iam para a Lunda povoar a zona recentemente atacada pelos terroristas. Só faltava trazerem o seu porquito e uma enxada ao ombro. A esperá-los estava uma camioneta desengonçada, onde um comissário do governo mordia as unhas no seu fato de linho branco.
Os frémitos de excitação de Mafalda estavam longe de aplacados. Continuava agarrada ao seu frasco de Channel 5 para disfarçar todo aquele odor másculo que entupia o ar. O cheiro adocicado do perfume francês era a única forma de a salvar do pecado. Que pena ter trazido tão poucas embalagens nas suas 23 malas... Inalou repetidamente, ao mesmo tempo que a culpa a assaltava, uma outra vez, fazendo-lhe chegar aos olhos estranhas e inconfessáveis imagens em que era uma bacante nua, em selváticos amplexos com um grumete franzino. Queria apagar dos olhos aquelas vergonhosas sombras de insinuantes cintilações. Olhou para a família beirã que descia a escada e viu como o filho, de ombros largos e mãos grossas, levava na mão um terço de prata. Era um sinal de que a redenção existia. Mas o rapaz tinha mesmo um lindo sorriso.
- O primo Benevides, onde estava o primo Manuel de Benevides!?, pensou.
Quando já estavam a sair as elegantes mulheres dos colonos ricos, com os seus belos chapéus e encantadores véus mosquiteiros que lhes cobriam parte do rosto, viu, finalmente, um carro preto emergir na confusão do porto. Um esbelto africano de enormes beiços voluptuosos abriu-lhe a porta e ela sentou-se ao lado de Manuel. Finalmente sentia um pouco de paz. Respirou fundo, mas foi por pouco tempo. Manuel de Benevides disparou.
- Ainda bem que veio, minha querida. Vamos já para o palácio do governador. Temo que não tenha boas notícias para lhe dar.
Enquanto o carro atravessava como uma seta a cidade, Manuel contou-lhe como Gonçalo fora capturado pelos guerrilheiros da UPA. Os membros do batalhão que não tinham sido mortos estavam prisioneiros numa zona inacessível do planalto dos Dembos, fortemente protegida por aldeias de ferozes kikongos, com as suas saias de sisal e as narinas perfuradas por dentes de leão. Armados pelos comunistas de Patrice Lumumba, eram um dos principais problemas das autoridades portuguesas que há séculos os tentavam converter à civilização pela bíblia, pela lei, mas também pela bala quando necessário. O governador já tinha tentado trocar Gonçalo por dois dirigentes terroristas, mas a resposta fora negativa e revelada às autoridades sob a forma de uma chuva de zarabatanas venenosas. Sabia que isso lhe iria trazer problemas em Lisboa. A família de Gonçalo jantava todas as semanas com, pelo menos, três afilhadas do presidente do conselho e a sua cozinheira era prima da poderosa D. Maria, cujas opiniões e influência desfaziam carreiras em São Bento.
Mafalda ficou ainda mais inquieta e ansiosa. Precisava de agir. Pediu ao governador que a incorporasse numa das colunas que mais cedo partisse para os Dembos. Ela iria como comissária do governo para a Bula da Santíssima Cruzada e da Conversão da Rússia. Atravessaria todas as Missões e percorreria o árido e selvagem interior da colónia, afastando-se cada vez mais das doces praias banhadas pelo oceano Pacífico, onde os soldados e as filhas dos colonos ouviam nos seus transístores Natércia Barreto cantar:
“Já arranjei muito bem tudo quanto convém para a praia levar
O pente, o espelho e o baton e um creme muito bom para me bronzear
Tenho o meu rádio portátil e o biquini encarnado também está no meu rol
E como é bom de ver não podia esquecer os meus óculos de sol
Que levo para chorar... uhuhuhuhu... sem ninguém ver
Para não dar... uhuhuhuhu... a perceber
Para ocultar... uhuhuhu... o meu sofrer
Pois eu sei que te hei-de encontrar talvez deitado à beira-mar
Com outra ao lado e eu vou passar a tarde a chorar (...)”
- A Febre
Do outro lado de Angola, numa machamba de pretos, sob a torreira do sol da Savana, outras vozes despontam nesta narrativa. Sem regras e sem limites a novela abre-se agora num fole, qual coro polifónico, a muitas e desencontradas personagens.
A voz da consciência de Gonçalo, angustiada e pastosa pela febre, iniciava o seu caminho.
O capim prolongava-se alto, por quilómetros em redor, cobrindo toda a terra mesmo por debaixo das árvores. Era tão crescido e esguio que nele se podiam esconder os pretos e os animais do mato. Atravessávamos picadas intermináveis entre estas paredes de capim, nas quais os pretos colocavam minas ou armadilhas para fazer voar os nossos jipes. E aqui o voo era directo para o céu. O barulho dos animais e dos pássaros troava nos ares. Ninguém queria conversar. Já não sabia se a respiração do Tavares era a de um turra que se escondia mesmo ali ao meu lado de fuzil na mão, pronto para atirar.
Tudo o que implicasse sair do aquartelamento era uma tortura. Os homens tentavam fechar-se nas casernas e em trabalhos rotineiros. Os que podiam dormiam, outros fumavam, outros ainda tinham descoberto as delícias da liamba que trocavam com a população das aldeias.
No rio as pretas lavavam roupa e fugiam de nós sempre que conseguiam. Mesmo quando se deixavam violar ficavam tão quietas que nos davam medo e vergonha.
O capitão Cabral obrigava todos os oficiais a usar gravata quando jantávamos.
- Nem no mato deixamos de ser uns senhores, dizia.
Depois repetia aos gritos:
- Isto não é um País! É uma Paísa! Uma Paísa!
- Melhor ainda meu capitão, dizia o Tavares, assim sempre deve ter boas mamas.
- Ó seu burro não percebes nada! E ainda por cima republicano! Mamas?! Mamas!? A pátria com mamas!... Pensas que és alguém?!... Achas-te o Doutor Adriano Moreira... o Afonso Costa! Quem tem ideias são os políticos. Pagos para isso e escolhidos pelo Doutor Oliveira Salazar. Deves pensar que és um desses intelectuais barbudos que não fazem fazer nada senão coçar o cu, nem sequer se sabem vestir, e que pensam que escrevem para o povo. O povo, pffff!... E fazia um esgar de repulsa...
Dentro da sua palhota, aprisionado pela monomania religiosa no Quinto Império e pela febre e os tremores do paludismo, Gonçalo suava abundantemente e recordava os últimos meses de vida militar. Tudo era um sonho. A vida seria um sonho? E um sonho bom? Provavelmente, provavelmente. Só queria ter a sua maçã de Inverno. Comê-la. Aqui e agora. Provavelmente...
sábado, 10 de janeiro de 2009
IV
Mãe-África
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